Chega: a direita radical, plebeia e ultraliberal

Chega: a direita radical, plebeia e ultraliberal

ANDRÉ FREIRE

Este texto é sobre o Chega, desde a rebelião interna no PSD até ao partido de direita radical, ultraliberal e alegadamente anti-sistema. Tomo como ponto de partida o livro de Ricardo Marchi, A Nova Direita Anti-Sistema. O Caso do Chega, Edições 70, 2020. Começo por apresentar o autor, a estrutura do livro e as suas teses, bem como a relevância do estudo.  Na segunda seção, apresento os pontos fortes. Termino com as maiores fragilidades da obra.

  1. A relevância da obra, a sua estrutura e o perfil do autor

Ponto prévio: qual a relevância do Partido Chega? O que nos ocorre primeiro é que a dimensão eleitoral (66442 votos ao nível nacional, 1,3%) e parlamentar (1/230 é igual a 0,4%) do partido indicam uma força política a roçar a irrelevância pelo menos do ponto de vista estatístico. Seja como for, a relevância do Chega (tal como da IL e do Livre) é tripla. Por um lado, acederam à representação parlamentar com uma lei eleitoral que os impedia de aceder aos debates com os grandes na TV: é obra. Por outro lado, e sobretudo para os casos do Chega e da IL, são partidos de grande radicalidade nas propostas, o que consubstancia uma notável inovação. Finalmente, sobretudo no caso do Chega, desde as legislativas de 2019 que as sondagens lhe dão a expectativa de um forte crescimento, de 1,3% para cerca de 5%-6% (pp. 123-124; sondagens compiladas pela Marktest, janeiro a junho de 2020).

Estabelecida a relevância da obra, uma nota sobre o autor. Doutorado em História Moderna e Contemporânea e licenciado em Ciência Política, Marchi é investigador de pós-doutoramento do Centro de Estudos Internacionais, do ISCTE-IUL, onde é também professor convidado. Tem vários livros e artigos em revistas académicas sobre as direitas radicais, e tem participado em projetos de pesquisa sobre este tema. É, portanto, um estudioso com provas dadas neste domínio.

O estudo baseia-se em 22 entrevistas a dirigentes do Chega, realizadas em 2019 e 2020, bem como no escrutínio de documentos do partido e de peças jornalísticas. Na primeira parte (134 do total das 206 páginas), Marchi apresenta-nos o percurso pessoal do líder do Chega, desde que liderou pelo PSD uma coligação com o CDS-PP (depois denunciada por este partido) e o PPM, à CM de Loures, nas autárquicas de 2017, e quando foi catapultado para a projeção nacional devido a declarações «politicamente incorretas» sobre a excessiva condescendência com que seria tratada a comunidade cigana, e o seu alegado incumprimento das leis e regras da República. Nesta parte, são ainda analisadas as diferentes fases da vida do partido, nomeadamente a fase «nacionalista liberal, conservadora, personalista e não europeísta», onde pontifica como «ideólogo» Jorge Castela (advogado, com percursos na direita partidária, nomeadamente na área do CDS-PP), que acabará por sair em rota de colisão com o partido (nomeadamente no contexto das irregularidades na legalização do partido junto do TC: janeiro – abril de 2018), e a segunda fase, que perdura até à atualidade, onde pontifica como «ideólogo» Diogo Pacheco do Amorim (ex-CDS-PP e ex-PND), designada como de «liberal-conservadorismo europeísta» (p. 52 e p. 136). Curiosa, designadamente do ponto de vista do seu significado substantivo, é a asserção de Ricardo Marchi de que as tensões ideológicas internas que sempre caracterizaram a curta vida do partido, foram sempre resolvidas em favor de uma suposta ala social democrata (onde pontificariam Ventura e Nuno Afonso, ambos ex-PSD): «o liberalismo de Castela aponta para uma redução do sector público, menos partilhada pelos fundadores vindos da social-democracia» (p. 59). Recorde-se que o Chega é apresentado como fruto de um movimento de rebelião interna no PSD contra Rui Rio (2018), protagonizado por Ventura, inicialmente apoiado, mas depois frustrado por parte das elites sociais-democratas, e por isso este partido é apresentado como um grito de revolta contra o status quo partidário. São ainda analisadas as eleições europeias de 2019 (em que o Chega liderou uma lista conjunta, «Basta», com o PPM, o PPV e a Dem21), as legislativas de 2019 (quando André Ventura chega à AR), as atribulações na legalização do Chega, a sua construção organizacional e os casos (positivos e negativos) do partido na arena parlamentar e mediática, nomeadamente o programa ultraliberal do partido, e o caso do conselheiro António Sousa Lara (recipiente de uma subvenção vitalícia por cargo político, tipo de subvenção essa combatida ardentemente pelo partido). Na segunda parte são analisadas «as ideias» do Chega em termos de «identidade», «economia», «família e educação», «imigração», «europa». O partido é apresentado como uma força de direita radical que se quer a si própria como plebeia (p. 49), mas que, paradoxalmente, se apresenta de facto com um programa político ultraliberal, pelo menos quanto ao papel socioeconómico do Estado, e simultaneamente com um grande conservadorismo na esfera dos costumes e estilos de vida (contra o aborto, mas sem criminalizar as mulheres; contra o casamento homossexual mas reservando-lhes a união de facto; contra a eutanásia, porque não quer o Estado a imiscuir-se na vida das pessoas), bem como da imigração (exigindo limitações à imigração, especialmente a de origem islâmica; exigindo assimilação dos imigrantes às normas e costumes do país, opondo-se terminantemente ao multiculturalismo). Ultraliberal na economia (pretende designadamente privatizar extensamente todas as funções do Estado, exceto as de soberania), mas só mesmo na arena doméstica, porque no campo internacional pretende ser nacionalista e protecionista. A teorização sobre o tipo de partido que o Chega representa vem apenas nas conclusões, e mesmo aí sem referências bibliográficas (são referidos Cas Mudde e Piero Ignazi, mas nenhuma das suas obras consta na bibliografia): um partido de direita radical e não de extrema direita porque a radicalidade das suas propostas pretende ser implementada respeitando as regras democráticas; um partido de nova direita porque renega as direitas fascistas do período de entre guerras.

  1. Os principais pontos fortes do livro

Primeiro: o livro está muito bem escrito, lê-se muito bem, e está muito bem documentado em matéria de fontes primárias e de imprensa escrita, pese embora a incompreensível ausência de uma bibliografia académica. Segundo: é uma obra muito detalhada e bastante bem alicerçada no grande manancial de dados utilizados, sobre o percurso político do Chega e do seu líder desde 2017 até à atualidade, sendo por isso, do meu ponto de vista, uma obra incontornável para se compreender o Chega. Finalmente, é de sublinhar a cada passo da análise uma certa tentativa de fazer uma apresentação tão analítica quanto possível, simultaneamente descritiva, analítica e crítica.

  1. As principais fragilidades da obra

Primeiro: um desejo implícito de normalização do Chega. Um exemplo: na introdução Marchi diz-nos que a Almedina se lhe pediu um tal estudo, mas que simultaneamente lhe pediu que não fosse nem uma obra apologética, nem uma tentativa de demonizar o Chega. Todavia, o autor deixa escapar uma vontade subjacente de normalizar o Chega: na introdução, são apresentados sete traços «extremamente positivos» do partido, mas nem um único traço negativo (pp. 16-17). Será que, por exemplo, a deriva anti-partidos e anti-classe política do Chega, bem como a sua pressão sobre certos elementos chave da ordem constitucional portuguesa e europeia (ver à frente) não devem merecer-nos pelo menos uma cautela crítica e problematizadora do que de menos positivo pode vir por aí?

Como já disse, o Chega assume-se claramente como uma direita plebeia na linha da direita bonapartista na tradição francesa (o partido da ordem de Napoleão e os oportunistas na III República, os movimentos anti-Dreyfus, as ligas do período entre guerras, o poujadismo, o gaulismo, a Frente Nacional – sobre este assunto ver o estudo seminal de René Rémond): «três são os segmentos que lhe interessam: a direita clássica do mundo rural e das elites mais conservadoras; as bases populares do interior do país; os subúrbios das grandes cidades (p. 49).» Nesta linha e tendo em conta, por um lado, a tradição da direita bonapartista e, por outro lado, os inúmeros estudos sobre as preferências dos portugueses ao longo do tempo (esmagadoramente a favor da intervenção do estado na sociedade e na economia, sobretudo em matéria de Saúde e Educação) é muito curioso que Marchi não veja uma contradição insanável entre a vertigem plebeia do Chega e o ultra-liberalismo. Esta é a segunda grande fragilidade da obra.

Terceiro: do ponto de vista das regras básicas da produção cientifica nas ciências sociais e políticas, este é um estudo esdrúxulo pois não há nem teoria, que geralmente aparece nos capítulos iniciais, nem bibliográfica académica; o esboço de teorização só aparece nas conclusões. O estudo está demasiado colado aos factos e à linguagem da luta política (por exemplo, os «temas fraturantes» são uma referência constante). Sente-se naturalmente a falta de uma teorização inicial sobre a direita e as direitas, as diferentes famílias e subfamílias, o que as une e as distingue, como evoluíram ao longo do tempo, não só para se perceber melhor onde podemos e devemos colocar o Chega, teorizações essas que depois deveriam orientar e iluminar as análises empíricas posteriores.

Quarto: em muitos casos, o estudo distancia-se pouco da forma como o partido se apresenta a si próprio na arena pública, ou problematiza pouco ou nada determinadas contradições insanáveis nas suas propostas. Que dizer, por exemplo, da combinação entre o ultraliberalismo na esfera doméstica e o protecionismo na arena internacional? E não será que uma tal proposta protecionista viola grosseiramente a ordem para-constitucional europeia das liberdades de movimentos, empurrando-nos para sair da UE se fosse levada a sério? E será anti-sistema um partido ultraliberal, quando uma tal abordagem exalta o sistema capitalista? O Chega pretende «acabar com a III República rumo a uma IV República» através de um referendo constitucional, mas não será que tal proposta viola a ordem constitucional vigente, democraticamente instituída, dado que tais referendos são proibidos pela CRP? E que dizer da limitação de direitos fundamentais de determinadas categorias de pessoas em certo tipo de processos judiciais (p. 143)? Enfim, um estudo importante, relevante, com vários pontos positivos, mas também com fragilidades fortes.

 

Publicado no Jornal de Letras, coluna mensal do autor «Heterodoxias Políticas», quinzena de 15 a 28 de julho de 2020.

Fonte da imagem:

Les Droites en France (Français) Broché – 19 novembre 1992, de René Rémond, em https://www.amazon.fr/Droites-en-France-Ren%C3%A9-R%C3%A9mond/dp/2700702603

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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