Censura e demissão no Jornal de Letras

Censura e demissão no Jornal de Letras

«Caro José Carlos Vasconcelos,

Votos de melhoras no campo da saúde!

Para mim é um alivio sair do Jornal de Letras, seja porque pagam muito mal (mas isso é o menos, não era por isso que não dei sempre o meu melhor em todos e cada um dos artigos: dei sempre o meu melhor!), seja pela sua crescente falta de  cordialidade (seja com o fim dos avisos para datas de entrega, seja com uma cada vez maior inflexibilidade com as datas de entrega dos artigos, uma semana antes do Jornal sair…, seja sobretudo com as suas tentativas não raras tentativas de interferir nos temas e conteúdos dos meus artigos, algo que não posso, nem poderia nunca tolerar: agora foi neste artigo sobre Odemira, que vetou, antes foi num artigo sobre a COVID19, a China e a alter-globalização, por exemplo, cuja interferência eu rejeitei liminarmente, e foi publicado na integra com algum desagrado seu).

Como já lhe disse, em 10 anos de Jornal Público, 2006-2016 (convidado por José Manuel Fernandes, servindo depois com José Vitor Malheiros, Nuno Pacheco e Bárbara Reis, e só saí porque «ficaram sem dinheiro para me pagar»…), nunca, mas nunca!, ninguém no Público interferiu nos temas e/ou nos conteúdos das minhas crónicas.

Sabemos que combateu a censura antes do 25 Abril, e durante os primeiros anos de democracia, mas, tal como a construção da democracia, o combate às pulsões censórias é um combate de todos os dias, sempre inacabado!…. e acho que você o abandonou em nome da máxima: «o respeitinho é muito bonito…». E, por isso, o seu problema com o meu artigo sobre Odemira foi nem a dimensão (pois eu estaria disponível para regras estritas a partir de agora, como escrevo abaixo, apesar de antes nunca terem vigorado assim…), nem a data de entrega (pois eu estaria disponível para regras estritas a partir de agora, como escrevo abaixo, apesar de antes nunca terem vigorado assim…), o seu problema foi a pulsão censória do respeitinho é muito bonito, pois como diz: «Nem nunca, por exemplo, nestes 40 anos, encontrará nas pp. de Ideias do JL, mormente sobre qualquer integrante dum orgão de soberania, sobre qualquer político de qualquer quadrante, sobre qualquer figura pública (político, intelectual ou o que seja), algo como o que logo a abrir o seu artigo escreve sobre o primeiro-ministro: “deu mostras de um grande cinismo e de uma grande hipocrisia políticas.”). A minha entrada é contundente e clara, mas está abundantemente documentada a seguir, não é gratuita, de todo em todo!, e felizmente o Jornal Público publicou o artigo na semana seguinte, logo em 27-5-2021: agora disponível aqui.

Naturalmente, tem todo o direito de estabelecer a linha editorial do seu jornal, mas, como expliquei abaixo de forma detalhada e documentada, eu já escrevi «n» vezes sobre assuntos da conjuntura política, em Portugal (não raro a seu pedido), na Europa e no Mundo, por isso esse argumento não pega… desculpe a crua franqueza.

Naturalmente, demito-me com muito gosto porque não posso tolerar as suas pulsões censórias.

E obviamente que darei estas explicações aos meus leitores do JL, no blogue VV 2.0, para que todos saibam porque me demiti do JL.

Cumprimentos e votos de muita saúde!

André Freire»

 

«De: José Carlos Vasconcelos <JCVasconcelos@jornaldeletras.pt>
Enviada: 4 de junho de 2021 01:28
Para: André Freire <andre.freire@iscte-iul.pt>
Assunto: FW: Sobre a minha colaboração com o Jornal de Letras – André Freire, 23-5-2021

Caro André Freire:

Peço-lhe desculpa pelo atraso da resposta que, além de pelas habituais dificuldades de tempo, se deveu sobretudo a um problema de saúde que desde há duas semanas me está a afetar. Acresce que, seja como for, nada tenho a acrescentar ao que lhe disse quando lhe telefonei a dar conta do que se passava. Sintetizando muito:

1) O texto não saiu porque veio fora do “prazo” e com 9586 car., excedendo o espaço que para ele tinha reservado e já não havendo tempo para esperar por eventual versão reduzida. Cada edição é uma edição, e se noutras foi possível “acomodar” o que não obedecia ao  combinado, naquela a que o artigo se destinava tal não aconteceu. Além do mais basta ver – como lhe será fácil ver – que essa edição teve perto de 7 pp. de publicidade, ou seja: o dobro do que o JL em média tem, com o consequente menor espaço redacional;

 

2) Independentemente do atrás dito, volto a acrescentar e confirmar que considero o seu artigo um comentário político, com características que não se inserem na parte de “Ideias” de uma publicação como o Jornal de Letras. E lembro-lhe que quando o convidei a colaborar frisei bem esse ponto: que não era para fazer “comentários políticos” – como num jornal diário ou num semanário qualquer -, que no JL não cabem e nunca houve, mas para tratar temas doutra forma e a outro nível, como especialista (exemplifiquei, se bem me recordo, com a questão dos sistemas eleitorais), como politólogo e não “comentador”. Embora podendo partir, e até podendo ser bom que partisse, quando se justificasse, de assuntos de atualidade. Como o Boaventura, o Viriato e o Guilherme muitas vezes têm feito, algumas delas a meu pedido ou por minha sugestão.

O Marcelo Rebelo de Sousa disse pelo menos duas vezes, nas suas dominicais intervenções televisivas, que só havia entre nós um “comentador” política mais antigo do que ele, que era eu. Pois nos 40 anos de existência do JL, nunca escrevi no jornal que criei e desde o início dirijo um comentário político, no sentido que lhe estou a dar e desde a nossa conversa inicial lhe disse qual era. Nem nunca, por exemplo, nestes 40 anos, encontrará nas pp. de Ideias do JL, mormente sobre qualquer integrante dum orgão de soberania, sobre qualquer político de qualquer quadrante, sobre qualquer figura pública (político, intelectual ou o que seja), algo como o que logo a abrir o seu artigo escreve sobre o primeiro-ministro: “deu mostras de um grande cinismo e de uma grande hipocrisia políticas.”

Não vou estar aqui a lembrar o que neste domínio fiz e lutei, antes e depois do 25 de Abril, tenho responsabilidades de direção em orgãos de informação há décadas, nunca disse a nenhum colaborador sobre o que “deve escrever”, no sentido que lhe dá. Mas sei o que é ou deve ser um jornal ou uma revista, as especificidades necessárias, etc. Se num Diário de Notícias, onde estive a seguir à revolução, não “cabia”, por a ele não ser adequado, p.e. um ensaio filosófico sobre o marxismo, no JL não “cabe”, por a ele não serem adequados, outro tipo de textos.

Assim, e para evitar mais mal entendidos, agradecendo-lhe a sua colaboração estes anos – a que dei o melhor tratamento editorial possível -, o preferível neste momento é de facto suspendê-la.

 

Retribuindo os cumprimentos, e cordialmente, o

José Carlos de Vasconcelos»

 

«De: André Freire <andre.freire@iscte-iul.pt>
Enviado: 23 de maio de 2021 12:48
Para: José Carlos Vasconcelos <JCVasconcelos@jornaldeletras.pt>
Cc: André Freire <andre.freire@iscte-iul.pt>
Assunto: Sobre a minha colaboração com o Jornal de Letras – André Freire, 23-5-2021

 

Caro José Carlos Vasconcelos,

Como lhe disse ao telefone na terça-feira passada, dia 18-5-2021 (terça-feira, pelas 23h30m, quando me telefonou a comunicar que o meu artigo não sairia no dia seguinte), fiquei muito desagradado com o seu veto à publicação do meu artigo para o JL, que deveria ter saído em 20-5-2021 (quarta-feira): «Odemira: agressão ambiental, exploração imigrante e hipocrisia política». O artigo é simultaneamente analítico e civicamente empenhado, está muito documentado, nomeadamente em estudos científicos e peças jornalísticas, eu aliás publicá-lo-ia numa qualquer revista de divulgação universitária. E reveste-se de grande atualidade e relevância (pela temática ambiental, pela temática da imigração, e pelo escrutínio contundente ao mau desempenho do governo e do PS em todas essas frentes, como abundantemente documentado no texto), muito para além do contexto de Odemira.   Aliás, em 1 de junho de 2021, irá a plenário da Assembleia da República (AR) para discussão a petição que refiro no texto contestando o excesso de agricultura superintensiva na zona de paisagem protegida do PNSACV (Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina), além de ir ter lugar uma manifestação em frente à AR nesse dia, sobre esse mesmo tema. Pela relevância, qualidade e oportunidade do texto, e dado o seu veto (que representa um desrespeito pelo meu trabalho e uma censura que não posso aceitar em qualquer caso), o artigo será publicado na versão impressa do Público durante a próxima semana.

 

Quanto aos seus argumentos, devo dizer que nenhum deles me convenceu minimamente. Primeiro, disse que o artigo tinha uma dimensão excessiva (9500 caracteres com espaços, quando deveria ter apenas 8500 caracteres com espaços, como combinámos de início para a dimensão máxima dos meus artigos). Por um lado, é verdade que o acordado entre nós como dimensão máxima para os meus artigos são 8500 caracteres com espaços, mas o JCV sabe muito bem que, no passado, o JCV/JL já acomodou inúmeras vezes, sublinho inúmeras vezes, textos meus com 9500 caracteres com espaços, e até mais… Por outro lado, escrevo também há bastante tempo nos jornais (10 anos no Público, 4 anos no JL) para saber muito bem que em emergências, e problemas de espaço com um artigo, como era este caso, quando há boa vontade e desejo de resolver problemas, não em criar obstáculos, pode sempre acomodar-se o excesso de texto com a retirada das imagens.

 

Segundo, argumentou o JCV que eu entreguei o artigo demasiado atrasado (quinta ao fim do dia para sair na edição da quarta da semana seguinte, quando eu devia ter entregado o artigo na quarta feira, o mais tardar quinta de manhã, da semana anterior à da edição do JL). Mas o JCV sabe muito que, no passado, o JL já acomodou muitos textos meus entregues à quinta ao fim do dia, e até á sexta-feira, da semana anterior à da semana de saída do JL.

 

Terceiro, argumentou o JCV que o teor artigo não era adequado para o registo do JL porque estava demasiado colado à contemporaneidade política (cito de memória). Tal seria mais o registo do Público, do Diário de Notícias ou do Observador, por exemplo. Todavia, por um lado, o artigo versa sobre um assunto da contemporaneidade política, é certo, mas é completamente analítico e documentado, embora civicamente empenhado como sempre. O Público também não aceita (e nem publica) artigos panfletários, e em dez anos nunca fez um único, sublinho um único, reparo sobre qualquer um dos inúmeros artigos que escrevi e publiquei quinzenalmente no jornal durante dez anos (e servi com José Manuel Fernandes, José Vitor Malheiros, Nuno Pacheco e Bárbara Reis). Por outro lado, eu tenho escrito amiúde artigos, sempre analíticos, documentados e civicamente empenhados, desde maio de 2017 (quando comecei a escrever mensalmente no JL), muitos deles a seu pedido, sobre assuntos da contemporaneidade política: sobre eleições autárquicas, legislativas, presidenciais, em Portugal (em França, nos EUA, em Espanha, no Brasil, etc.); sobre a governação política em Portugal e noutros países europeus e não só (inúmeros artigos, por exemplo, sobre o chamado governo da «Geringonça» e as eleições legislativas de 2019 e as presidenciais de 2021); sobre a ação do presidente; etc., etc. Além de inúmeras recensões de livros e de análises políticas sobre peças de teatro e filmes. Todos sempre muito bem recebidos, dos ecos que me iam chegando.

Portanto, e para resumir: posso aceitar que a entrega do texto da minha coluna tenha de ser sempre feita até à quarta-feira da semana anterior à saída do JL e que o texto não possa exceder nunca os 8500 caracteres com espaços incluídos. Quando não conseguir cumprir isso, não publico nessa quinzena. Mas não posso aceitar, de todo em todo, que o JL me diga sobre o que devo escrever, a não ser que seja um artigo a pedido, ou sobre como devo escrever sobre os diferentes assuntos sobre os quais sempre tenho escrito. Se tem interesse na continuação da minha colaboração no JL, deve confirmar rapidamente a sua concordância expressa com estes princípios fundamentais para este email (durante a próxima semana o mais tardar – até porque os meus textos para o JL requerem sempre bastante trabalho de fundo), caso contrário termina aqui a minha colaboração regular o JL. Se tem interesse na minha colaboração, então confirme em resposta a este email e, se quiser, também de viva voz.

 

Com os melhores cumprimentos,

AF

Lisboa, 23-5-2021»

 

André Freire

Full Professor in Political Science (Professor Catedrático de Ciência Política),

Director of the Doctoral Programme in Political Sicence (& IR), Departament of Political Science & Public Policies – School of Sociology & Public Policies, at ISCTE-IUL (University Institute of Lisbon),

Senior researcher at CIES-IUL (Centre for Sociological Studies and Research).

Avenida das Forças Armadas, 1649-026 LISBOA Portugal

https://ciencia.iscte-iul.pt/public/person/arlf

www.iscte-iul.pt

Research on political representation:

https://er.cies.iscte-iul.pt/en/node/42

Wikipedia:

https://en.wikipedia.org/wiki/Andr%C3%A9_Freire

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https://avacavoadora.pt/author/andrefreire/

Orcid author:

https://orcid.org/0000-0001-5307-6832

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Author ID: 8634830500

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André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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