Catalunha 21D:  a grande maioria pelo direito a decidir

Catalunha 21D:  a grande maioria pelo direito a decidir

  1. A antecâmara das eleições autonómicas de 21 de dezembro (21D) na Catalunha

Há uma crise constitucional, primeiro, e democrática, depois e acima de tudo, em Espanha, com epicentro na Catalunha, pelo menos desde que, entre 2006 e 2010, os conservadores nacionalistas castelhanos (PP) decidiram submeter à fiscalização constitucional (TC) o novo Estatuto Autonómico da Catalunha, o qual encetava uma reforma rumo a uma maior federalização do regime, e o TC decidiu considerar inconstitucional uma boa parte do dito. Recorde-se que o novo Estatuto tinha sido aprovado, em março de 2006, por cerca de 80% dos deputados, e por referendo, em junho de 2006, com 73,4% de votos a favor, ambos na Catalunha. Foi ainda aprovado, embora com alterações significativas, no Parlamento espanhol, em maio de 2006 – ver Bodlore-Penlaez, 2017, p. 81.

Desde então, vários dados mudaram na política catalã e espanhola. Primeiro, em Espanha, a seguir às eleições de dezembro de 2015, o PSOE foi incapaz de formar governo com a IU, o Podemos e (partidos associados às) minorias periféricas de esquerda, apesar de ter maioria numérica para tal, porque se recusou a aceitar o direito da Catalunha a decidir o seu futuro. Ou seja, o impasse espanhol, nomeadamente entre o PSOE, tem fortes raízes na Catalunha. Segundo, desde então tem havido sempre maiorias de independentistas na região (ver Tabela 1) e, sobretudo, os tradicionais alinhamentos esquerda – direita na formação de governos (Romão, 2017, pp. 100-101) foram secundarizados, a partir de 2010, por alianças de nacionalistas catalães que atravessam transversalmente a divisão esquerda-direita. Terceiro, direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos têm sido colocados em causa pelo Estado central e pela justiça espanhola na tentativa desesperada de ilegalizar a pulsão independentista: foram presos (e alguns continuam na prisão) dirigentes políticos e associativos por defenderem, primeiro, o direito da Catalunha a decidir o seu futuro em referendo e, segundo, por expressarem as suas opiniões (pacificamente) nesse sentido (ver Levrat et al, 2017; Loff, Rosas et al, 2017; Freire, 2017). Quarto, apesar de tudo isso, não só se mantem as maiorias absolutas de deputados de partidos independentistas catalães (cfr. Tabela 1), tendo as eleições de 21D sido das mais participadas de sempre, como se mantem ainda reforçado o campo dos que, além dos nacionalistas catalães, defendem o direito da Catalunha a decidir (a Esquerda Unida – IU, e seus aliados na Catalunha, ICV; e o Podemos e seus aliados na região, Cat.S.Pot./CatComú-Podem.). Junto com os independentistas catalães formam maiorias de deputados de 83 (61,4%) e 78 (57,7%), respetivamente em 2015 e 2017, num total de 135 assentos.  A maioria relativa do partido Ciudadanos (o novo partido de centro-direita que apoia o PP em Madrid, embora seja seu competidor, e que combate o independentismo catalão), em forte crescimento, junto com os lugares dos socialistas catalães (em refluxo) e dos populares (em fortíssima queda), não são suficientes, portanto, para impedir um novo governo arco-íris, isto é, heterógeno do ponto de vista da divisão esquerda-direita, mas homogeneamente nacionalista catalão.

 

Tabela 1 – Deputados eleitos por partido no Parlamento da Catalunha, 2006-2017 (N: 135)

Formação 2006 2010 2012 2015 2017
CIU 48 62 50
JuntsxCat 34
ERC (ERC-CatSí) 21 10 21 32
SCI 4
CUP 3 10 4
JxSí 62
Nacionalistas Catalães 69 76 74 72 70
PSC 37 28 20 16 17
PSUC/ICV 12 10 13
AP/PP 14 18 19 11 4
UCD
C’s 3 9 25 36
PSA
CDS 3
Cat.S.Pot./

CatComú-Podem.

11 8
Não Nacionalistas Catalães 66 59 61 63 65

Fontes: Romão, 2017, p. 99, segundo estatísticas oficiais do governo da Catalunha, para 2006-2015; 2017: https://en.wikipedia.org/wiki/Catalan_regional_election,_2017

 

Partindo do 21D, na Catalunha, o presente artigo pretende, com o auxilio do recente livro de Filipe Vasconcelos Romão (2017), Espanha e Catalunha. Choque entre Nacionalismos, esmiuçar um pouco as causas do impasse Hispano-catalão. O autor é professor da UAL, e professor convidado do ISCTE-IUL, na área das Relações Internacionais, sendo ainda investigador associado do CEI-IUL. Romão é um profundo conhecedor da política espanhola, nomeadamente dos seus vários nacionalismos, e, por isso, como verão, o seu livro mais recente, que vem na linha da sua tese de doutoramento sobre o tema, é de grande utilidade para a compreensão deste conflito.

 

 

 

  1. Antecedentes genéticos da crise atual

 

Sem ser preciso fazermos arqueologia, ou seja, sem ser preciso remontarmos ao século XVII, e à então independência frustrada da Catalunha, para percebermos a crise atual (como bem aconselha Romão no seu livro), é necessário remontarmos às contradições do texto Constitucional espanhol de 1978 para a percebermos. Será apenas durante a II República espanhola, 1931-1936, que os nacionalismos periféricos históricos (bascos, catalães e galegos) irão ser reconhecidos pelo Estado espanhol, e lhes serão concedidos estatutos autonómicos consagrando uma representação autónoma. Mesmo assim, só no caso da Catalunha tal estatuto foi aplicado em período de normalidade do regime (e o estatuto galego não chegaria nunca a ser aplicado).  A ditadura franquista,         que veio depois do derrube da II República e da guerra civil, vai reprimir severamente os nacionalismos periféricos, não apenas no terreno político, mas também no terreno cultural (proibição do uso das línguas próprias, por exemplo). Também por isso, os nacionalismos periféricos vão ter um papel importante no combate à ditadura franquista, sobretudo a partir dos anos 1950 e 1960. Por um lado, sendo esse papel reconhecido e valorizado por todos os democratas espanhóis, era natural que a Constituição espanhola de 1978 lhes desse algum espaço político. Mas, por outro lado, dada a pilotagem da transição democrática pelas forças conservadores, avessas a grandes impulsos autonómicos, e considerando o alinhamento das forças armadas com as perspetivas mais conservadoras, neste tema os compromissos e as contradições são marca de água da Constituição de 1978.

Apesar de a Catalunha fazer parte, junto com a Galiza e o País Basco, de um conjunto de nações constituintes do Estado multinacional espanhol, algo bem evidenciado no Atlas das Nações sem Estado organizado pelo especialista do assunto Bodlore-Penlaez (2017, pp. 32-33, 66-85 e 140; ver também a nossa argumentação neste sentido, no JL: Freire, 2017), a Constituição espanhola de 1978 fala apenas na «indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis (…)», no singular (Romão, 2017, p. 28). Todavia, contraditória e compromissoriamente, também «reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a integram e a solidariedade entre todas elas». Do ponto de vista da organização territorial do Estado, unitário e centralizado versus federal e descentralizado, a Constituição de 1978 é muito vaga e tanto permitia uma solução como a outra. Na prática, serão os Estatutos Autonómicos que irão aprofundar o regime em direção ao federalismo e à descentralização, ainda que de forma muito assimétrica, ou seja, privilegiando a Galiza, o País Basco e a Catalunha (Romão, 2017, pp. 83-97), e numa direção apenas «quase federal» (Freire, 2017).

 

  1. Causas próximas da crise atual

 

O aprofundamento do regime «quase federal» será tentado por José Rodriguez Zapatero, líder do PSOE, inesperadamente vencedor das eleições de 2004 (dada a gestão desastrosa, pelo PP, dos atendados de 11 de março de 2004, atribuídos à ETA quando os responsáveis sabiam não ser o caso, eram antes obra dos fundamentalistas islâmicos, em resposta à participação da Espanha na «Guerra ao terror» e na invasão do Iraque). Muito influenciado pelo então líder catalão, Pascal Maragal, Zapatero irá avançar com propostas federalizantes: reforma do Senado, transformando-o numa Câmara de representação territorial; maior descentralização de competências e recursos para as comunidades autónomas; maior participação destas no processo de integração da UE (Romão, 2017, pp. 50-58). Todavia, o PP nunca terá digerido, segundo Romão (2017, pp. 60-61), a derrota nas eleições de 2004, e, em anos de fortíssima polarização, instrumentalizou a questão catalã para combater o PSOE, nomeadamente via Estatuto da Catalunha, conforme já referimos acima. Mais, mesmo antes do chumbo do TC, já Zapatero tinha recuado no Estatuto da Catalunha entre a sua aprovação na região e a votação no Congresso dos deputados. Perante este «fracasso da Espanha plural», proposto inicialmente pelo PSOE, a política na Catalunha mudou radicalmente: por um lado, à tradicional divisão entre esquerda e direita, na formação dos governos, passou-se a um alinhamento entre nacionalistas (governos arco-íris desde 2010) versus não nacionalistas catalães; e foram já organizados dois referendos sobre a independência (2014 e 2017). Porém, a instrumentalização aconteceu também da parte dos nacionalistas catalães: na sequência da crise das dividas soberanas na Europa, o governo de coligação (CiU-ERC-ICV), liderado por Artur Mas, teve de aplicar um severo programa de austeridade e, segundo Romão (2017, pp. 116-117), instrumentalizou o tema do direito da Catalunha a decidir (e da independência) como uma forma de secundarizar, na cabeça dos eleitores e nos mass media, os efeitos socioeconómicos das suas políticas de austeridade.  Seja como for, o impasse está instalado, nomeadamente porque o 21D reeditou as maiorias de nacionalistas catalães, 2006-2015, e as super-maiorias pelo direito a decidir da Catalunha, 2010-2017.

 

  1. Os cenários de saída do impasse Hispano-catalão

 

O livro de Filipe Vasconcelos Romão (2017), que aqui analisamos para nos ajudar a compreender a crise constitucional e democrática hispano-catalã, antes e depois do 21D, é um livro cuja leitura recomendo por cinco motivos essenciais. Primeiro, a obra está muito bem escrita e organizada. Segundo, o autor é um profundo conhecedor da realidade que trata e, portanto, o leitor obterá informação rigorosa sobre estes assuntos. Terceiro, com um formato de bolso o livro é uma boa introdução inicial aos temas e, adicionalmente, como todas as afirmações relevantes são sempre documentadas (via referências bibliográficas e/ou ligações na rede) o leitor poderá sempre aprofundar (e verificar por si) os assuntos (menos desenvolvidos) em leituras posteriores. Quarto, embora reconheça que isso é um objetivo mais do que um resultado adquirido em ciências sociais e políticas, Romão ensaia uma análise equidistante face às partes em conflito.

Todavia, algumas dessas virtudes são também, simultaneamente, calcanhares-de- Aquiles da obra, especialmente visíveis em dois pontos fundamentais.  Primeiro, a centralidade dada à tentativa de equidistância leva a uma reflexão muito recuada sobre as possíveis vias de saída e sobre os conflitos de valores fundamentais que estão aqui em causa. Diz-nos Romão (2017, pp. 134-135): «o bloco independentista avançou escudado em meras suposições e não em factos. (…)» Ou «(…) o governo/nacionalismo espanhol utilizou a legalidade formal para um imobilismo injustificado.» Conclui Romão: «A independência da Catalunha num contexto de normalidade é, hoje, uma causa impossível. Por muito que custe ao independentismo e aos seus simpatizantes, a Catalunha não será, a médio prazo, um Estado independente reconhecido pela comunidade internacional e pelo União Europeia. (…)». Tudo isto é, simultaneamente certo e muito Realpolitik, ignorando os conflitos de valores fundamentais entre o Estado de Direito (a Constituição espanhola) e a democracia e os direitos e liberdades fundamentais (a que a Constituição espanhola também está vinculada), conforme foi já explicado por Loff, Rosas et al (2017), por Levrat et al (2017) e por Freire (2017).

E não se pense que, neste caso da Catalunha, a compressão de liberdades e direitos fundamentais pela justiça espanhola (e pelo governo central) é um mero resultado da separação de poderes e do Estado de direito a funcionar. Embora, Romão refira que a justiça espanhola é das mais permeáveis ao poder político da Europa (2017, pp. 130-131), dá muito pouco relevo a este assunto central. Pelo contrário, investigadores do IPRI, num relatório para o IDN, revelam, carreando abundantes evidências, que a justiça espanhola é das mais politizadas da Europa, que isso se agravou com a crise, e que a maioria do dia (se absoluta, no senado e na Câmara Baixa: PP, 2011-2016) pode controlar a maior parte da nomeação de juízes para os tribunais superiores (supremo, constitucional), ou que o Presidente do TC é filiado no PP (Fernandes et al, 2017), e, portanto, evidenciam que as decisões do TC (e da justiça espanhola) são tudo menos apenas o Estado de direito a funcionar…  como alguns menos informados podem eventualmente pensar.

 

 

Referências bibliográficas

 

Bodlore-Penlaez, Mikael (2017), Atlas das Nações sem Estado na Europa, Lisboa, Através Editora.

Fernandes, Tiago, Gaspar, Carlos, Ribeiro, J.M.F., Cruz, Bernardo P., & Viana, Nuno (2017), Futuros da Europa, Lisboa, Relatório IPRI-UNL & IDN, Policopiado. Cortesia dos autores.

Freire, André (2017), «O direito da Catalunha a decidir», Jornal de Letras, quinzena iniciada em 16-11-2017, disponível em http://avacavoadora.pt/o-direito-da-catalunha-a-decidir/

Levrat, Nicolas, Antunes, Sandrina, Tusseau, Guillaume, e Williams, Paul (2017), Catalonia’s Legitimate Right to Decide, s.l., s.ed., policopiado, disponível em http://exteriors.gencat.cat/web/.content/00_ACTUALITAT/notes_context/FULL-REPORT-Catalonias-legitimate-right-to-decide.pdf

Loff, Manuel, Rosas, Fernando, et al (2017), «Catalunha: pela democracia, contra a repressão», Público, 6-10, 2017. Disponível em: http://avacavoadora.pt/catalunha-pela-democracia-contra-a-repressao/

Romão, Filipe Vasconcelos (2017), Espanha e Catalunha. Choque entre Nacionalismos, Lisboa, Book Builders.

 

 

André Freire

Versão aumentada de artigo saído na coluna «heterodoxias políticas» no Jornal de Letras, a partir de 17-1-2018 (quinzena)

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

2 Comments
  • David Duarte
    Posted at 19:32h, 25 Janeiro

    Caro André Freire,

    Como é bom ler um texto que vai além da forma superficial com que a questäo catalä tem sido tratada, sobretudo por media e comentadores que, vamos a ver, limitam-se a reproduzir os argumentos dos media de Madrid. Bom exemplo disso foi a recente cobertura da intervênçäo de Puidgemont na Universidade de Copenhaga, à quel tive o prazer de assistir. A importância dada às questöes provocadoras da professora Marlene Wind (a qual disse no inicio da sua intervençäo que era nessa atitude que iria tomar da palavra) e a forma negligente como as respostas de Puidgemont foram tratadas denotam tudo, menos objectividade… tanto mais que tanto o moderador como os dois professores presentes confessaram, desde o inicio do evento e publicamente, que näo eram especialistas em politica espanhola…

    Gostaria apenas de dar uma achega no ponto relativo aos antecedentes da crise actual. O André salta do século XVII para a II Republica quando, pelo meio, no final do século XIX, dà-se a I Republica, dado extremamente importante para compreender a Catalunha contemporânea pois foi a partir de Barcelona que, entäo, teve lugar a tentativa de implementar um sistema federal em Espanha, nomeadamente com o Presidente Francisco Pi i Margall, referência maior do movimento republicano e federalista cataläo através, nomeadamente, do seu livro ‘Las nacionalidades’.

    A questäo é que o movimento republicano cataläo näo se reduz ao independentismo que Puidgemont representa (ou foi obrigado a representar). Existe igualmente um republicanismo que, mais do que querer separar-se de Espanha, ambiciona a sua unidade através do reconhecimento da existência de vàrias comunidades politicas e culturais (incluindo Portugal, num Estado ibérico federal onde necessariamente a Espanha, enquanto projecto imeprialista do centro castelhano, deixaria de existir). O interessante de Pi i Margall é que o seu pensamento näo se limitava à Peninsula. pelo contàrio, a Peninsula seria o primeiro passo para um Estado federal europeu, uma espécie de laboratorio cujos resultados deveriam estender-se ao resto da Europa.

    Neste ponto encontra-se a actualidade do movimento republicano federalista cataläo: ajudar-nos a repensar o proprio projecto europeu.

    • André Freire
      Posted at 16:26h, 03 Março

      Obrigado pela nota e pelo comentário, caro David Duarte!
      ainda bem que gostou do artigo.
      André Freire