13 Nov Caixa de Memórias (da Guerra Civil no Líbano, 1980s), no LEFFEST
No âmbito do LEFFEST (Lisbon and Estoril Film Festival) 2021, um festival de cinema de primeira água que já vai na sua décima quinta edição, fomos hoje (no segundo dia do festival, 10-21 novembro de 2021) ver ao Nimas «Caixa de Memórias» (Memory Box), uma produção francesa, libanesa, canadiana – leia-se do Canadá francófono, Quebec -, e ainda do Qatar. Apesar de falado em francês (uma das línguas oficiais do Líbano) e em árabe, o filme é apresentado com um título em inglês, curiosamente. Curiosidades à parte, a sessão de hoje contava com a mulher (Joana Hadjithomas) da dupla de realizadores (Joana Hadjithomas & Khalil Joreige), e ainda com uma atriz (Manal Issa) da dupla de mulheres protagonistas (que inclui também Rim Turki), que abriram a sessão, junto com o anfitrião do Nimas e do LEFFEST, e também a fecharam com um interessante e estimulante debate aberto à audiência.
A sinopse do filme, da lavra do LEFFEST na sua página com a programação, reza assim: «Maia (Rim Turki e, na sua juventude, durante a guerra no Líbano, Manal Issa) vive em Montréal com a filha adolescente, Alex (Paloma Vauthier). Na noite de Natal, Maia recebe uma caixa. Lá dentro estão os cadernos, as gravações e as fotos que ela enviava à sua melhor amiga (Liza) depois de esta partir do Líbano (para Paris). Maia recusa-se a abrir esta “caixa de Pandora”, mas Alex, trancada em casa devido a uma tempestade de neve, acaba por, às escondidas, vasculhar a caixa de memórias da mãe, descobrindo a adolescência conturbada de Maia durante a guerra em Beirute. Caixa de Memórias é o filme mais admirável da dupla libanesa, que têm vindo a trabalhar a questão da memória na criação de imagens e os processos emocionais associados aos traumas de guerra.» (parêntesis nossos)
Em primeiro lugar, do meu ponto de vista, o filme é muito interessante pela temática, a devastadora guerra civil no Líbano (centrada na fase dos anos 1980), um país tão martirizado quanto fascinante, e elaboração sobre as memórias e traumas das guerras, seja entre adolescentes, seja entre jovens e menos jovens adultos. (Uma nota importante neste sentido do martírio: depois do filme rodado, mostrando o Líbano destruído pela guerra, e depois reconstruído quando mãe e filha regressam para o visitar vindas do Canadá e depois da revisão das memórias, nova catástrofe no país do Cedro destruiu mais uma vez Beirute: o rebentamento de um enorme cargueiro carregado de explosivos volta a deixar a cidade arrasada). Situado no Médio Oriente, o Líbano é uma das sociedades mais multiétnicas e multirreligiosas (com muçulmanos, xiitas e sunitas, e cristãos, maronitas e ortodoxos, e drusos, além de uma importante coluna secular) do mundo, e também tradicionalmente bastante cosmopolita, pelo menos Beirute. Fruto das tensões interétnicas e inter-religiosas, muito influenciadas e acicatadas, quando não mesmo pilotadas, pelos vizinhos beligerantes (Israel, Síria, Irão e alguns países árabes sunitas) do país do Cedro, o país tem sido assolado por guerras desde meados dos anos 1970. Sobretudo pela voz e pelo sentir de um conjunto de mulheres (a avó, uma atriz não profissional, a mãe, esta em diferentes fases da vida: duas atrizes, e a filha), as memórias da guerra são relembradas pela filha através de fotos, cartas e gravações que a mãe recebe na noite de natal e, pelo menos a principio, tenta ocultar da filha… tais documentos relatam as memórias traumáticas da guerra, a destruição do país, a perda de familiares (o pai, diretor de uma escola destruída por bombardeamentos, facto que o leva ao desemprego, ao desalento e depois ao suicídio, e o irmão da mãe), mas, simultaneamente, o prosseguimento da vida, sobretudo entre os adolescentes que, mesmo quando envolvidos na luta armada (o namorado da mãe, Raja: Hassan Akil), querem viver a sua juventude, amar, desfrutar da vida, nem que seja às escondidas, nem que seja fugindo dos bombardeamentos, nem que seja nos períodos de acalmia durante a guerra, etc. Em segundo lugar, a força das mulheres em todas estas vidas trágicas é também um elemento notável. E o Líbano é um dos países do Médio Oriente onde as mulheres têm uma existência mais liberalizada, por assim dizer, nomeadamente face aos países xiitas e sunitas mais conservadores do ponto de vista religioso; a família do filme é, bem entendido, cristã. Em terceiro lugar, por último mas não menos importante, o filme evidencia claramente o cunho dos realizadores, os quais são simultaneamente fazedores de filmes, mas também artistas plásticos que juntam amiúde nas suas obras fotografia, vídeo, instalações e performances. E toda essa interdisciplinaridade artística (se é que posso chamar-lhe assim?!) está bem patente no filme, fazendo parte do seu carácter extremamente apelativo, impressionante, inovador e belo. Um filme rigorosamente a não perder e que deverá chegar às salas em 2022 pela mão da Leopardo filmes. Parabéns ao LEFFEST pela belíssima escolha de «Caixa de Memórias» para exibir no festival.
Fonte da foto: tirada pelo autor deste texto no âmbito do debate após o filme, no Nimas, em 12-11-2021, 19h-21h20.
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