27 Nov As Presidenciais Americanas de 2020: Cruciais, Incertas e Arriscadas
Esclarecimento
Ontem, terça-feira, 3 de novembro, realizaram-se umas eleições presidenciais nos EUA com especial importância para a América e para o mundo, ainda mais do que geralmente já acontece – e ignoro se, no momento em que este texto vem a lume, ou em que o leitor o lê, já são conhecidos os seus resultados. Para o efeito é secundário, pois este texto, finalizado cerca de uma semana antes do dia das eleições, não reflete sobre os seus resultados, mas antes sobre as suas estimativas, as leituras e interpretações políticas dos mesmos, quaisquer que sejam. Parte destas análises baseiam-se, aliás, nas apresentações feitas numa conferência do ISCTE-IUL, a 23 de outubro, por Russell Dalton, prof. de Ciência Política na Universidade da Califórnia, Irvine, grande especialista internacional em política comparada, opinião pública, voto, cultura política e participação, e por Bart Bonikowski, prof. de Sociologia na Universidade de Nova Iorque e especialista no estudo comparado da direita radical.
Além da conferência, o ISCTE-IUL tem uma exposição sobre as presidenciais americanas nos séculos XX-XXI, que permanece visitável até 20 de novembro. Esta exposição resulta de uma parceria com a Associação Ephemera, dirigida por José Pacheco Pereira, e nela podem ver-se cartazes, pins, stickers, bumperstickers, t-shirts, objetos, panfletos, jornais, livros, recortes de imprensa, etc., referentes às presidenciais realizadas entre 1916 e 2020.
Introdução
O Presidente incumbente, Donald Trump, que segundo Russell Dalton se revelou bastante mais à direita nas suas ações do que o percecionavam os eleitores em 2016, representa sérios riscos para a democracia nos EUA, em particular, e no mundo, em geral. Por um lado, ao nível da política externa, Trump tem posto em causa inúmeros tratados, acordos e alianças no âmago de uma visão multilateralista da política internacional, preferindo não raro entender-se com potências autoritárias (por exemplo, com a Rússia) mais do que com os aliados europeus. Por outro lado, na esfera doméstica, tem feito uma política baseada em notícias falsas (fake news), ataque aos mass media independentes, deslealdade política e, portanto, utilizando tudo ao seu alcance para atingir os seus fins de pôr em causa o «sistema de pesos e contrapesos» da democracia americana. A tentativa de controlo do poder judicial, e não apenas no Supremo Tribunal, através da nomeação massiva de juízes conservadores, bem como todas as tentativas (passadas, presentes e estimadas) de pôr em causa a legitimidade e a lisura dos processos eleitorais, são exemplos paradigmáticos. Adicionalmente, Donald Trump é um farol fundamental para o campo da direita radical, nacionalista, autoritária e populista por esse mundo fora (Brasil, França, Hungria, Polónia, Itália, Espanha, Portugal, etc.), pelo que a reedição da sua presidência fortaleceria ainda mais esse campo.
Federalismo, eleições e sistemas eleitorais nas eleições americanas
A democracia americana representa um dos protótipos mais fortes do federalismo no mundo (e a sua pátria genética), ou seja, do tipo de soluções políticas multi-estatais (50 estados mais a capital, Washington DC, o distrito de Columbia) em que coexiste um governo central (a presidência americana), o executivo federal, e um congresso nacional bicameral (a câmara dos representantes, com 435 deputados, distribuídos por cada estado em proporção da respetiva população; a câmara alta, com 100 senadores, 2 por cada estado), com poderes simétricos das duas câmaras, com governos e parlamentos estaduais (50). O federalismo implica que pode haver grande variação nas leis vigentes em cada estado, variância essa apenas limitada pelas balizas definidas na Constituição Americana; bem como uma grande variabilidade no nível de captação fiscal e de despesa pública concretizadas pelo governo federal versus os governos estaduais, em termos relativos.
Na verdade, na primeira terça-feira de novembro de cada ano presidencial não se elege apenas o presidente, elegem-se todos os deputados (câmara baixa do congresso nacional), 1/3 dos senadores (renovações parciais de dois em dois anos), e ainda as autoridades políticas dos 50 estados. Acresce que a câmara baixa é completamente renovada bianualmente. Tudo somado, este é um sistema que produz amiúde maiorias (ideologicamente) divididas, nomeadamente entre presidente e congresso nacional (muito por causa das renovações parciais e de curto prazo), dado que reforça o elemento liberal da democracia americana (das maiorias divididas resulta um governo ainda mais limitado do que é já norma nos regimes demoliberais): sistema de pesos e contrapesos muito forte. Da natureza federal do regime decorre também uma especificidade muito forte da democracia americana: as eleições presidenciais são indiretas, ou seja, os eleitores elegem 538 membros de um colégio eleitoral que, por sua vez, irá eleger o presidente. Há, portanto, 51 eleições, sendo que cada estado tem no colégio eleitoral a soma do número dos seus deputados mais os seus dois senadores, a que acrescem 3 lugares pelo distrito de Columbia. Mais importante para as distorções nos resultados que temos encontrado recentemente (nas últimas 5 eleições, em 2 delas o vencedor no colégio eleitoral teve muito menos votos populares do que o segundo classificado: Trump vs. Clinton; Bush vs. Al Gore) é o facto de as eleições dos membros do colégio eleitoral em cada estado se decidirem por maioria relativa em círculos plurinominais, ou seja, o vencedor leva tudo (exceto no Maine e no Nebraska). A grande variabilidade nas regras, e a incerteza nos resultados e na barganha em torno das suas leituras, estende-se às regras para o voto antecipado (presencial ou postal), que tem estado a ser abundantemente usado pelos eleitores. Trump já sugeriu que poderá pôr em causa os resultados do voto postal, deslegitimando-os a priori e, eventualmente, a fortiori.
As previsões de Russell Dalton e Bart Bonikowski
Na apresentação de Bart Bonikowski, na referida conferência, Trump foi classificado na área da direita radical, nacionalista, autoritária e populista. Especialmente relevante foi a ativação da clivagem nacionalista latente há muito entre o eleitorado americano, em 2016, fruto de uma sucessão de crises, declínio industrial, crescimento das desigualdades, insegurança da maioria branca, declínio das identidades de classe, a insegurança gerada pela globalização e pela presença massiva dos imigrantes, especialmente para determinados segmentos mais vulneráveis do eleitorado (das zonas industriais em declínio, mais fustigadas pela globalização, cujos empregos e quiçá costumes ficam, pelo menos subjetivamente, mais em risco com a presença massiva dos imigrantes, etc.), os chamados «working class conservatives» (recorde-se a clássica série de TV «Archie Banker»). Segundo Bonikowski, o tipo de nacionalismo ativado por Trump é do género «restritivo» e/ou «ardente», ou seja, que revela grande apego à ideia de nação, é restritivo em termos de fronteiras étnicas ou étnico-religiosas da comunidade nacional, e moderada ou elevadamente chauvinista.
Por seu lado, Russell Dalton falou-nos das tendências na opinião pública e nas estimativas nas sondagens. Por um lado, evidenciou que, em 2016, na escala liberal-conservador (equivalente à escala esquerda-direita), Trump estava mais próximo do eleitor mediano americano do que Hillary Clinton; porém, as suas ações foram muito mais extremadas do que sugeria o seu posicionamento inicial. Porém, na corrida para as eleições de 2020, Biden aparece muito mais próximo do eleitor mediano do que Trump (percecionado como muito à direita), o que é uma vantagem. Adicionalmente, nas médias das sondagens nacionais, entre março e outubro de 2020, Biden aparece, em média, com cerca de 10 pontos de avanço face a Trump. Mas como se disse, há 51 eleições. Dalton disse-nos que, por um lado, as empresas de sondagens melhoraram muito as suas metodologias face ao fracasso preditivo de 2016. Por outro lado, mostrando a «cobra do colégio eleitoral», evidenciou que, segundo as sondagens estaduais, há uma maioria consistente em vários Estados que dão a Biden mais de 270 eleitos no colégio (o limiar da maioria), estando ainda, além disso, alguns estados em dúvida sobre para que lado cairá a vitória (além dos estados solidamente pró republicanos).
Conclusões: Incerteza e risco
As sondagens, nacionais e estaduais, sugerem uma vitória de Biden, nas urnas e no colégio eleitoral, mas a diversidade de regras, o mecanismo da eleição indireta e a enorme participação que se espera, geram significativa incerteza. E, sobretudo, a barganha pós-eleitoral em torno dos resultados poderá via a ser dura, acima de tudo se a margem de vitória for magra, e acabar em prolongadas batalhas judiciais, ou, muito pior ainda, em deslegitimação das eleições e até mesmo em violência nas ruas.
Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna «Heterodoxias Políticas», quinzena de 4 a 17 de novembro.
No Comments