A vida como uma das belas artes

A vida como uma das belas artes

Este texto podia ser feito só com transcrições de uma notícia da edição de sábado do jornal Público https://www.publico.pt/sociedade/noticia/portugueses-perderam-tres-anos-de-vida-saudavel-mulheres-estao-pior-1750025. Pela voz do director executivo do Plano Nacional de Saúde é reconhecido que “Vivemos mais, mas vivemos mal, ou pior do que poderíamos viver, nos últimos anos de vida. É um envelhecimento duro. Viver muitos anos não chega”. Finalmente, ao fim de tantos anos de evidência estatística e social do que se estava a passar com a esperança de vida dos portugueses, olha-se para este indicador e reconhece-se que não basta traçar uma recta de tendência, acrescentar-lhe uns perlimpimpins e temos mais 30% de esperança de vida sem incapacidade em 2020. A realidade tem por hábito ser mais exigente  com as previsões, sobretudo se elas forem feitas à base da máquina de calcular, porque é multifactorial e intersectorial. E quando estes dois parâmetros se cruzam a incerteza e a margem de erro aumentam exponencialmente e, por isso, é necessário redobrar as cautelas com o que se projecta. Principalmente quando as medidas para as concretizar, as previsões, ficam geralmente na gaveta das promessas.

Tudo indica que o exercício de fixação do valor deste indicador para 2020 é equivalente ao que foi feito para a fixação do valor da diminuição das urgências nos hospitais do SNS para 2016. Fazem-se uns cálculos e depois logo se vê. E é aí que entra em cena a realidade. Num caso houve um aumento brutal da procura, no outro caso, a meio do percurso, e comparado com 2013, em 2014 já se levava, em média, menos três anos de esperança de vida saudável, aos 65 anos. E no caso das mulheres, como geralmente acontece na avaliação das desigualdades, o retrocesso daquele valor é ainda mais preocupante, ao ter passado de 9,3 anos para 6 anos.

Tão preocupante como esta variação negativa são os argumentos avançados para explicar esta situação: Primeiro argumento: “Será que este indicador é um reflexo de um agravamento geral das condições sócio-económicas do país nos últimos anos e que agora são visíveis?” Holmes diria, elementar meu caro Watson. Segundo argumento: “a geração que hoje tem 65 anos tem níveis de escolaridade relativamente baixas e exerceu profissões manuais com repercussões em termos de saúde”. Errado. À medida que se recua no tempo as condições sociais de vida acompanham a situação social e económica da altura. Terceiro argumento: “É preciso introduzir uma nova dimensão da saúde – o bem estar. Isso passa pela saúde ocupacional, as empresas são muito importantes”. Errado. Porque o bem-estar só tem a ver com as empresas, e é estranho à saúde ocupacional, na medida em que são entidades empregadoras. Mas o bem-estar é indissociável  da escolaridade, do emprego, do rendimento, da rede social em que se está inserido e da comunidade de que fazemos parte. Quarto argumento: a estratégia nacional para o envelhecimento saudável. Não tem a ver com o assunto. Porque é desde que se nasce que a promoção da saúde tem de estar sempre presente.

Finalmente, uma voz que resume o panorama da saúde em Portugal: “Este é um indicador terrível. Vivemos tantos anos como os cidadãos de países mais desenvolvidos, mas vivemos doentes”, comenta o presidente da Associação Amigos da Grande Idade, Rui Fontes. O problema é que, enquanto os países mais avançados investem na prevenção, Portugal investe “nos acamados”, critica. Tudo resumido, o que este indicador sinaliza é a inexistência, antes e agora, de uma política de saúde orientada para o bem-estar dos portugueses. A qual continuará nesta “apagada e vil tristeza” enquanto as comunidades e os actores sociais locais não fizerem parte da equação. E da solução.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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