A prenda do Francisco Simões para a Madeira

A prenda do Francisco Simões para a Madeira

Mesmo desconfiando que este primeiro parágrafo seja desnecessário, aproveito-o para enquadrar o Francisco Simões neste texto com uma breve apresentação: é um conceituado escultor português (a exemplo, esculpiu as “Mulheres de Lisboa” do Campo Pequeno e os poetas e a “Ilha dos amores” do Parque dos Poetas), que  nasceu em Porto Brandão e deu aulas na Ribeira Brava, primando por um projecto pedagógico social e artístico que, passadas décadas, os seus antigos alunos ainda recordam. O seu grande empenho no ensino (palavra que ele prefere a educação defendendo mesmo o seu emparelhamento sociopolítico com a cultura) valeu-lhe distinção de tal forma que hoje tem o seu nome no Agrupamento de Escolas Francisco Simões, em Almada. Pelo meio há ainda um reconhecido percurso académico e pedagógico, cultural e artístico, e também de intervenção política e social. Sem nunca ter perdido a sua ligação à Madeira, escolheu-a para passar os últimos anos da sua vida, trazendo consigo o que considero uma admirável “prenda” para a nossa região: o Centro de Artes Francisco Simões (CAFS), na freguesia de São Roque. Da Madeira disse ele, numa entrevista há 2 anos antes de se mudar para a ilha: “ Eu gosto tanto da Madeira que penso vir viver em breve para aqui”. E veio. E trouxe-nos o seu espólio artístico: 500 obras de arte (esculturas, pinturas, serigrafias, desenhos, cerâmicas…) e 500 livros sobre arte, poesia e literatura, entre outras temáticas. E digo “trouxe-nos” porque o Francisco não quer que o CAFS seja “um cemitério de arte”, nas suas palavras, mas antes um Centro virado para a comunidade na sua vocação de espaço para a cultura e para a educação. O Francisco Simões quer disponibilizar o seu espaço, desinteressada e gratuitamente (sim, leram bem, “desinteressada e gratuitamente”), para diversos projectos pedagógicos e culturais regionais que ele mesmo já congeminou, embora continue receptivo a outras, e mais, propostas. Por exemplo, pretende, mediante organização e logística prévias, receber visitas de grupos de artistas ou de alunos de artes (o mesmo para outros alunos de outras áreas de ensino, secundário ou universitário, no âmbito das respectivos programas pedagógicos; o mesmo para turistas desde que organizado por agências ou outras entidades turísticas); ceder o espaço a associações ou direcções escolares, com agendamento prévio, para debates dedicados ao ensino, e à cultura e às artes, ou mesmo a outro tema; ou para workshops sobre pintura, escultura e desenho para alunos da escola de artes ou outros interessados, projectados atempadamente; ou mesmo para pequenos concertos ou tertúlias culturais e artisticas; entre outras iniciativas possíveis naquele espaço e sempre na mira da promoção e da dinamização artística e cultural, sobretudo a regional, desde as artes plásticas à literatura; do teatro à música, passando por outras vertentes e expressões da cultura.

Porém, para que este sonho/projecto se torne possível- para que esta nossa “prenda” (da Madeira) possa ser usufruída por todos nós – um só homem não chega, é preciso que se crie um pequeno grupo de trabalho para o efeito: é preciso alguém em permanência no CAFS para abrir as portas e para se ocupar de toda a logística preparatória para que estes eventos se concretizem. Sim, o Francisco Simões não pede subsídios nem qualquer outro financiamento das entidades governamentais e oficiais, como aliás já o frisou diversas vezes em entrevistas. Bastava-lhe uma formalidade para o arranjo destes encontros, bastava-lhe o destacamento de alguém ou do Município do Funchal ou do Governo Regional, ou de ambos, para operacionalizar a “prenda” que magnanimamente nos trouxe, a todos nós, madeirenses. Bastava que os órgãos governamentais e municipais valorizassem a cultura e as artes nos seus programas e acções governativas. Porque assiste-se, ano após ano, orçamento após orçamento, a estratégias de apoio apontadas sobretudo para o turismo, desvalorizando outros projectos e associações culturais, mesmo as de cariz regional com trabalho de décadas em prol da região. E a verdade é que a falta de aposta e investimento na nossa cultura, não só compromete a continuidade destas unidades culturais como ameaça agravar o desemprego, já tão avultado em tempo de pandemia.

E lega-nos, o Francisco Simões, a sua colecção em troca de nada, e os responsáveis da tutela da cultura, governamentais e municipais, não investem sequer num acordo que abriria as portas a todos os madeirenses e aos demais visitantes da ilha a uma colecção artística prestigiada e reconhecida nacional e internacionalmente.  Não se ignora assim uma prenda, senhores governantes, prenda essa que é para todos nós, madeirenses.

( artigo previamente publicado no JM no dia de Natal)

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Sílvia Vasconcelos
vasconcelos.silvia@gmail.com

Médica Veterinária, doutorada em Ciências Veterinárias, componente biomédica sobre os benefícios dos animais para saúde mental dos seres humanos. Actualmente dirigente nacional e coordenadora regional do Movimento Democrático das Mulheres, foi também deputada pela CDU na Assembleia Legislativa da Madeira. Foi ainda actriz no Teatro Experimental do Funchal, integrando vários projectos artísticos de teatro e de televisão desde 1986.

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