20 Nov A poesia enquanto memória sentimental e… política
Perguntarão os seguidores deste blog o que é que a poesia tem que ver com a política? Para melhor resposta poder-se-ia recomendar a leitura de um rol de poetas, nacionais e internacionais, que discorrem, a sua explanação poética, por elementos fortemente políticos, como a liberdade, por exemplo. Porque toda a escrita é “um lugar que pensa” …
Hoje optou-se por um desses poetas que é também um dos autores deste blogue: o Cipriano Justo e a viagem a que nos desafiou recentemente à Sicília através do seu mais recente livro de poesia: “ Uma temporada na Sicília”, num caminho que é eminentemente interior ao poeta, numa espécie de derrama emocional, mas que recria em nós, leitores, a nossa própria história numa linguagem dialogante e pensante, convocando-nos.
A sua poesia, toda a poesia, tem este condão, a de ser um género literário livre, talvez o mais livre… e de assim permitir a sua livre apreciação, tornando-se, inequivocamente, uma leitura de prazer.
É isto que se sente no livro do Cipriano Justo: uma manifestação de beleza que se vai arrumando em palavras e que vai despertando, ao longo das páginas, sentimentos e reflexões. Versos livres, sem métrica. E é porventura isto que mais enaltece a poesia, prezando a sua componente mais emotiva e mais livre.
A poesia do Cipriano tem a narrativa e a autonomia da prosa, e pelos cinco capítulos do seu livro somos levados numa viagem pelas províncias sicilianas a revisitar lendas e memórias históricas, culturais e geográficas da Sicília, pelo apreço e perspectiva do autor. Num primeiro capítulo, quase em modo de Ode, não resiste a evocar, enaltecendo, os templos gregos; o ainda animado Etna; o “herói de dois mundos” que foi Garibaldi (e num outro capítulo e séculos mais adiante a também destemida Rosa (Luxemburgo) que “preferia os lugares onde as fúrias passam os dias”. Mas onde também se entrega à exaltação da beleza dos lugares sicilianos que superam a própria toponímia num escoamento sentimental nas praias de Vaccarizzo ou nas ruas da Catânia. Ou seja, conta-nos estórias da História e da história do autor (e todo o poeta, mesmo sendo “um fingidor”, não consegue escapar à própria história) e fala-nos de lamentos de lugares de subordinação e exploração, para quem “a bala será sempre a arma da ira” ante a infinitude das lutas dos povos. E este, é um aspecto a reter na poesia do Cipriano, para além da entoação de emoções e ponderações : o carácter interventivo, político e crítico da sua escrita.
Na sua poesia, e particularmente neste livro, o autor combina palavras que são em si as nossas pregaçãoes internas, os nossos lugares de emoções, de diálogos, de memórias – e de esquecimentos também- de afirmações, de resistência, de amores e de encontros efémeros, dispondotudo em conteúdos semânticos e identitários, e fixos a tantos de nós, os leitores. Sim, é o que se pretende dizer: o Cipriano expressa visões pessoais, suas, do sujeito poético, e outras ficcionais que se obstinam na subjectividade de quem o lê, através da descrição dos seus próprios sentimentos e vivencias: “ a nocturna paixão da felina madrugada como acto solitário”; “os actores que descem do palco para se tornarem expectadores de si mesmos”; “a ameaça de que há quem venha tirar-lhes (nos) o que ainda falta viver”; “as palavras que trocamos e que corriam o risco de se tornarem líquidas”; “ alinha de silêncio que nos separa e que é tudo o que nos resta nestes dias” ou… “ os haveres que nos cabem no pensamento nalgum canto da memória”, os relatos da nossa “paisagem atormentada pela erosão do abandono” e o sentido das coisas que “há-de ficar suspenso do que ficar por ser dito”.
Já em Palermo encontramos uma divisão do livro ainda mais intimista, onde a linguagem é sobretudo metafísica, filosófica e meditativa; onde elementos, como a solidão, a morte – como representação que não chega a acontecer nem “chega a terminar, tal é a lonjura do que deixou”; como a dor e o envelhecimento – os invernos que não passam – ou como a nostalgia dos lugares que, para o poeta, “são um engano, não existem, não constam dos roteiros” , mas certo é que sobrevivem ao Homem e esperam-no, os lugares; ou ainda como figuras enigmáticas como a Margareth, cuja alegoria lhe devolve – ou confirma? – a existência ; ou como Zuleima, cujo nome “nunca pronunciado na reportagem do bairro” simboliza o que se poderia ter sido e não se foi. E justifica, o Cipriano, o seu próprio acto de escrita, assim: “ fazer a vez da memória das viagens que acabam sempre” e contar” as desilusões que lhe causam, as feridas que ainda guarda das suas ausências”.
Mas, uma vez poeta, “não há para onde ir”. Os poetas são infindáveis mãos que escrevem.
E a temporada na Sicília pelas mãos do Cipriano é uma união de significados e narrativas que perfazem a matéria-prima da cultura da sua própria poesia.
Os poetas são cultivadores de inquietações e desassossegos em nós, os leitores. E plantam-nos quebrantáveis emoções.
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