A poesia enquanto memória sentimental e… política

A poesia enquanto memória sentimental e… política

Perguntarão os seguidores deste blog o que é que a poesia tem que ver com a política? Para melhor resposta poder-se-ia recomendar a leitura de um rol de poetas, nacionais e internacionais, que discorrem, a sua explanação poética,  por elementos fortemente políticos, como a liberdade, por exemplo. Porque toda a escrita é “um lugar que pensa” …

Hoje optou-se por um desses poetas que é também um dos autores deste blogue: o Cipriano Justo e a viagem a que nos desafiou recentemente à Sicília através do seu mais recente livro de poesia: “ Uma temporada na Sicília”, num caminho que é eminentemente interior ao poeta, numa espécie de derrama emocional, mas que recria em nós, leitores, a nossa própria história numa linguagem dialogante e pensante, convocando-nos.

A sua poesia, toda a poesia, tem este condão, a de ser um género literário livre, talvez o mais livre… e de assim permitir a sua livre apreciação, tornando-se, inequivocamente, uma leitura de prazer.

É isto que se sente no livro do Cipriano Justo: uma manifestação de beleza que se vai arrumando em palavras e que vai despertando, ao longo das páginas, sentimentos e reflexões. Versos livres, sem métrica. E é porventura isto que mais enaltece a poesia, prezando a sua componente mais emotiva e mais livre.

A poesia do Cipriano tem a narrativa e a autonomia da prosa, e pelos cinco capítulos do seu livro somos levados numa viagem pelas províncias sicilianas  a revisitar lendas e memórias históricas, culturais e geográficas da Sicília, pelo apreço e perspectiva do autor. Num primeiro capítulo, quase em modo de Ode, não resiste a evocar, enaltecendo, os templos gregos; o ainda animado Etna; o “herói de dois mundos” que foi Garibaldi (e num outro capítulo e séculos mais adiante a também destemida Rosa (Luxemburgo) que “preferia os lugares onde as fúrias passam os dias”. Mas onde também se entrega à exaltação da beleza dos lugares sicilianos que superam a própria toponímia num escoamento sentimental nas praias de Vaccarizzo ou nas ruas da Catânia. Ou seja, conta-nos estórias da História e da história do autor (e todo o poeta, mesmo sendo “um fingidor”, não consegue  escapar à própria história) e fala-nos de lamentos de lugares de subordinação e exploração, para quem “a  bala será sempre a arma da ira” ante a infinitude das lutas dos povos. E este, é um aspecto a reter na poesia do Cipriano, para além da entoação de emoções e ponderações : o carácter interventivo, político e crítico da sua escrita.

Na sua poesia, e particularmente neste livro, o autor combina palavras que são em si as nossas pregaçãoes internas, os nossos lugares de emoções, de diálogos, de memórias – e de esquecimentos também- de afirmações, de resistência, de amores e de encontros efémeros, dispondotudo em conteúdos semânticos e identitários, e fixos a tantos de nós, os leitores. Sim, é o que se pretende dizer: o Cipriano expressa visões pessoais, suas, do sujeito poético, e outras ficcionais que se obstinam na subjectividade de quem o lê, através da descrição dos seus próprios sentimentos e vivencias: “ a nocturna paixão da felina madrugada como acto solitário”; “os actores que descem do palco para se tornarem expectadores de si mesmos”; “a ameaça de que há quem venha tirar-lhes (nos) o que ainda falta viver”; “as palavras que trocamos e que corriam o risco de se tornarem líquidas”; “ alinha de silêncio que nos separa e que é tudo o que nos resta nestes dias” ou… “ os haveres que nos cabem no pensamento nalgum canto da memória”, os relatos da nossa “paisagem atormentada pela erosão do abandono” e o sentido das coisas que “há-de ficar suspenso do que ficar por ser dito”.

Já em Palermo encontramos uma divisão do livro ainda mais intimista, onde a linguagem é sobretudo metafísica, filosófica e meditativa; onde elementos, como a solidão, a  morte – como representação que não chega a acontecer nem “chega a terminar, tal é a lonjura do que deixou”; como a dor e o envelhecimento – os invernos que não passam – ou como a nostalgia dos lugares que, para o poeta, “são um engano, não existem, não constam dos roteiros” , mas certo é que sobrevivem ao Homem e esperam-no, os lugares; ou ainda como figuras enigmáticas como a Margareth, cuja alegoria lhe devolve – ou confirma? – a existência ; ou como Zuleima, cujo nome “nunca pronunciado na reportagem do bairro” simboliza o que se poderia ter sido e não se foi. E justifica, o Cipriano, o seu próprio acto de escrita, assim: “ fazer a vez da memória das viagens que acabam sempre” e contar” as desilusões que lhe causam, as feridas que ainda guarda das suas ausências”.

Mas, uma vez poeta, “não há para onde ir”. Os poetas são infindáveis mãos que escrevem.

E a temporada na Sicília pelas mãos do Cipriano é uma união de significados e narrativas que perfazem a matéria-prima da cultura da sua própria poesia.

Os poetas são cultivadores de inquietações e desassossegos em nós, os leitores. E plantam-nos quebrantáveis emoções.

 

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Sílvia Vasconcelos
vasconcelos.silvia@gmail.com

Médica Veterinária, doutorada em Ciências Veterinárias, componente biomédica sobre os benefícios dos animais para saúde mental dos seres humanos. Actualmente dirigente nacional e coordenadora regional do Movimento Democrático das Mulheres, foi também deputada pela CDU na Assembleia Legislativa da Madeira. Foi ainda actriz no Teatro Experimental do Funchal, integrando vários projectos artísticos de teatro e de televisão desde 1986.

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