A Grécia e os Balcãs sob o espectro do comunismo e das guerras

A Grécia e os Balcãs sob o espectro do comunismo e das guerras

Os tempos de pandemia têm-me levado a ver vários filmes que já possuía (geralmente em DVD) e não tinha tido ainda oportunidade de ver, ou (como é o caso vertente) têm-me levado a rever filmes de que gosto muito e a que, por isso mesmo, volto de tempos a tempos. Foi este último caso, precisamente, com a coletânea «The Theo Angelopoulos Collection – Volume III», com a chancela da Artificial Eye, e que reúne talvez o leque de melhores e mais conhecidos filmes do cineasta grego: Ulysses’s gaze (1995); Eternity and a Day (1998); The Weeping Meadow (2004); The Dust of Time (2009).  A análise das ressonâncias políticas, históricas e humanas destes filmes e destas músicas são, pois, o objeto deste nosso texto.

Theodoros Angelopoulos (1936-2012) é um cineasta grego de projeção internacional que estudou Direito, em Atenas, e Literatura, em Paris (Sorbonne), tendo posteriormente cursado também cinema. Todavia, não terá concluído o curso de cinema por ter entrado em conflito com os seus professores e ter sido expulso da escola. De volta à Grécia, começa a escrever como crítico de cinema num jornal de esquerda, «Mudança Democrática», mas com o golpe militar que impôs a ditadura dos coronéis (1967-1974) fica desempregado. Em 1968 realizou o seu primeiro filme. «A Emissão», iniciando aí a sua longa carreira como realizador de cinema. A Wikipedia (fonte que usamos para esta biografia de Theo) descreve assim o seu estilo, em duas pinceladas: «Seus filmes são conhecidos pelas longas cenas sem cortes (plano-sequência), pelo silêncio, alegorias e referências mitológicas, além da temática que percorre os caminhos da melancolia na civilização moderna – de maneira mais específica em duas fases: a primeira mais marxistabrechtiana, e a segunda, a partir de “Viagem a Citera”, com abordagens mais emocionais e subjetivas». Em janeiro de 2012 morreu atropelado por um motociclo no Piréu (a Sul de Atenas, onde vivia) tendo, por isso, deixada inacabada a trilogia iniciada com The Weeping Meadow e The Dust of Time.

Mas eu, pessoalmente, creio que cheguei ao cinema de Theo Angelopoulos através da música de Eleni Karaindrou (1941). Ou seja, cheguei à sétima arte de Theo por via dos discos de Eleni, a qual musicou muitos dos filmes dele, nomeadamente todos e cada um dos filmes referidos acima e que analisamos neste texto: Ulysses’s gaze; Eternity and a Day; The Weeping Meadow; The Dust of Time. Eleni estudou piano no Conservatório de Atenas (Hellenikon Odeion), mas estudou também história e arqueologia. Durante o período da ditadura dos coronéis viveu em Paris, onde estudou etnomusicologia e orquestração, tendo também improvisado com músicos de jazz. Em 1974, regressou a Atenas e estabeleceu o laboratório para instrumentos musicais tradicionais e tem colaborado com o departamento de musicologia da Orquestra Nacional Grega. A sua música clássica contemporânea combina, pois, instrumentos tradicionais gregos com instrumentos mais clássicos e é conhecida pelas suas colaborações musicais para filmes e peças de teatro. Conta com inúmeros discos na sua carreira, a grande maioria deles na chancela ECM, muitos deles bandas sonoras de filmes, nomeadamente de Theo Angelopoulos.

Ulysses’s gaze, de 1995, que obteve o grande prémio do júri em Cannes em 1995, é para mim talvez o melhor filme deste conjunto de quatro fitas. O argumento foi escrito a várias mãos (Theo Angelopoulos, Tonino Guerra, Petros Markaris, Giorgio Silvagani, Kain Tsitseli) e a obra foi realizada no contexto das guerras que sucederam o colapso da Federação Jugoslava, nomeadamente na Bósnia Herzegovina. Um prestigiado realizador exilado, A (Harvey Keitel), regressa à Grécia e empreende uma viagem pessoal pelos Balcãs em busca daquele que poderá ter sido o primeiro filme alguma vez feito na região, realizado pelos irmãos Menaki, e que antecede a primeira obra oficialmente conhecida deles (The Weavers). Obsessivamente, e tal como na saga de Ulisses no regresso a casa depois da guerra de Tróia, A empreende uma viagem pelos Balcãs em busca das fitas desconhecidas, nunca editadas, e passará pela Albânia, Macedónia do Norte, Bulgária, Roménia, Sérvia (Belgrado) e finalmente Bósnia (Sarajevo). É uma busca obsessiva pelas raízes do cinema, das identidades balcânicas, pela memória (também das memórias da diáspora grega). A viaja de vários modos (táxi, autocarro, comboio, cargueiro e pequeno barco a remos, este último no final, de Belgrado para Sarajevo) através dos Balcãs e encontra vários amigos e amigas, mas nunca se detém. Uma das imagens metafóricas mais emblemáticas do filme é quando A viaja num enorme cargueiro, um barco muito comprido, pelos rios dos Balcãs (talvez o rio Sava ou o rio Drina), sendo que o enorme veículo transporta além de A, outros passageiros e carga, uma gigantesca estátua de Lenine, deitada no chão da barcaça: as guerras jugoslavas sob o espectro do fim do comunismo. A viagem irá terminar tragicamente na cidade sitiada da Sarajevo onde A descobre o diretor de um cinema underground, Ivo Levy (Erland Josephson), que tem as fitas procuradas e aceita descodificá-las. O filme termina num dia de forte nevoeiro, única maneira de os habitantes de Sarajevo poderem escapar aos atiradores furtivos (snipers), com uma encenação operática em pleno nevoeiro, outra cena sublime do filme. No final, porém, Ivo Levy e a filha são mortos por militares, apesar do nevoeiro. Um filme extraordinário, com uma música sublime, uma temática relevantíssima, uma obra belíssima (imagens e som).

Os filmes The Weeping Meadow, de 2004, e The Dust of Time, de 2009, fazem parte de uma trilogia inacabada (dada a morte do realizador, conforme atrás referido). O primeiro, com argumento de Theo Angelopoulos, Tonino Guerra, Petros Markaris e Giorgio Silvagani, conta-nos a história da Grécia através da estória de uma família grega, antes emigrada em Odessa (Ucrânia), e que regressa à pátria depois do fim da primeira guerra mundial e da eclosão da revolução russa, mais precisamente em 1919. Através da estória de Eleni (Alexandra Aidini) e de Alexis (Nicos Poursadinis), bem como dos seus dois filhos gémeos, são-nos relatadas as condições de vida difíceis na Grécia, no período entre guerras, o ascenso da Frente Popular e, posteriormente, do refluxo autoritário com o general Metaxas. A família irá ficar separada com a emigração do pai, para os EUA, e depois com a segunda guerra mundial (e as invasões italiana, repelida pelos gregos, e depois alemã/nazi, que redundou numa oposição feroz e numa massiva deportação de judeus, nomeadamente de Salónica), a que se seguiu a guerra civil (1946-1949) que opôs os comunistas às forças pró-ocidentais, e que terminou com a vitória destes e a ilegalização do KKE (Partido Comunista Grego). Note-se que os gémeos irão combater (e morrer) nos dois lados que se digladiam na guerra civil.

The Dust of Time tem argumento só de Theo Angelopoulos e fala-nos de uma comunista grega exilada na URSS (Eleni: Irène Jacob), e mais tarde presa sob o Gulag (1956), onde conheceu um judeu alemão também preso na Sibéria (Jacob: Bruno Ganz). Mais precisamente, a história fala-nos de um famoso realizador grego (A: Willem Dafoe), filho de Eleni, que regressa a Roma em busca de sua filha que vive de forma errática em casas abandonadas, com drogados e vagabundos.  A avó, Eleni, e o seu marido grego (Spyros: Michele Piccoli), que vivia exilado nos EUA quando Eleni estava presa na Sibéria, vão ajudar a recuperar a neta da vagabundagem e a reunir a família, mas pelo meio temos também as memórias do exilio (e prisão) na URSS, através do encontro em Berlim de Eleni, Jacob e Spyros. São imagens sublimes envoltas numa música maravilhosa e única, através das quais nos são relatados estes temas épicos da história da Grécia moderna.

O filme Eternity and a Day, de 1998, e que ganhou a palma de ouro no Festival de Cannes (1998), é talvez o filme mais intimista e menos claramente político, e tem argumento de Tonino Guerra, Theo Angelopoulos, Petros Markaris e Giorgio Silvagani,. Fala-nos da história de um famoso escritor grego de meia idade, Alexandros (Bruno Ganz), que vive em Salónica e que, tendo-lhe sido diagnosticada uma doença terminal tem que abandonar tudo, a casa, o cão, a empregada doméstica, para ingressar no hospital no dia seguinte. O filme relata-nos a história do escritor nesse dia, desde a visita à filha e ao genro (que recusam ficar com o cão, o qual acabará por ficar com a empregada domestica, e lhe revelam ter vendido a casa da praia sem lhe dizer nada) ao resto do dia passado com um menino albanês de origem grega (que é explorado por traficantes na vagabundagem), de permeio com as memórias de vida passada do escritor, na Grécia, junto ao mar, etc. Neste como nos outros filmes, são sempre imagens e sons de rara beleza, muita poesia e profunda humanidade, num cinema que é, apesar disso tudo, não tão fácil como isso… para mais, tirando «A Poeira do Tempo», não há (pelo menos que eu conheça) edições com legendagem em português (de Portugal). Um bom desafio fica por isso aqui para a Midas Filmes, ou para outra distribuidora e/ou produtora interessada em divulgar o trabalho de Theo Angelopoulos em Portugal: a edição desta coletânea devidamente legendada em português.  Para todos aqueles que seguem bem áudio e legendas só em inglês (as legendas em inglês são só para as partes do filme faladas em grego), podem adquirir  já aqui o DVD.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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