02 Fev A crise do turismo em Viena de Áustria
Não abriu os telejornais, nem foi notícia de primeira página. Apesar disso, apesar de quem tem por missão dar a conhecer o que de relevante vai ocorrendo, de divulgar os acontecimentos que contribuem para tornar mais capaz a vida social, ter omitido o que se desenrolou em dois palcos, primeiro no teatro S. João do Porto, depois no D. Maria de Lisboa – a apresentação da obra de Karl Kraus, Os Últimos Dias da Humanidade – , essa irresponsabilidade cívica não pode ser deixada de ser alvo de reprovação. Porque, para quem teve o privilégio de lá estar poderá ter bem acontecido que nos tempos mais próximos não volte a ter a oportunidade de assistir a tamanho acontecimento cultural. Porque foi disso que se tratou. No tratamento cénico, no rigor da representação, e sobretudo na ousadia de encenar o que pode ser tido como um tratado sobre a vida na retaguarda em tempo de guerra.
Com o que somos confrontados é com todas as misérias que se vão desenrolando na retaguarda da I Guerra Mundial, da qual resultou o desmembramento do império austro-húngaro e a reconfiguração do mapa europeu. À falta de melhor assunto, ou para não tratar do assunto que começava a descortinar-se no horizonte, a derrota do império, suspira-se pelo regresso do turismo a Viena. É a alienação o que une os que na retaguarda se dedicam aos negócios, os que traficam influências, os que prometem aos famintos o pão que sabem não lhes poderem dar, os que expulsam quem não obedece à ortodoxia, os que se divertem nos salões, os que se embebedam nos quarteis, os manipuladores das consciências. É disto que são feitas as rotinas da retaguarda. Mas como em todas as circunstâncias, também aqui há um Eterno Descontente, aquele que questiona as razões da guerra, que invectiva os que lucram com ela, o que proclama os futuros desastres. O que a certa altura nos avisa que “A frente de batalha expandiu-se para o interior do país. Vai aí permanecer. E a velha atitude mental vai juntar-se à vida transformada, se ainda houver vida”. É afinal do Eterno Descontente que se alimentam todos os abandonados. No plano simbólico, este trabalho de Karl Kraus remete para o que hoje em dia se passa um pouco por todo o mundo e, no plano substantivo, o Eterno Descontente colectivo volta a dirigir a sua censura aos que se esforçam por cavar novas trincheiras..
Depois daquele 28 de Junho de 1914, em Serajevo, o que se lhe seguiu foi a irresistível ascensão dos que, poucos anos volvidos, vieram para concluir uma guerra que, de facto, sabemos agora, não tinha terminado. Num poema de 1933, publicado no nº 888 do Die Fackel, Kraus reconhece que Reina o silêncio num mundo destroçado./Faltou ao verbo alento;/a fala é já sem tento. Por isso, vinte anos depois, as retaguardas da guerra acabaram por se transformar no palco da retaliação pela humilhação imposta aos vencidos, agora sob a forma de valas comuns para comunistas, socialistas, judeus, ciganos e para quem não obedecesse ao führer. A um império estava prometido outro império, este para durar mil anos, mas uma vez mais o Eterno Descontente não deixou de desempenhar o seu papel até que a máquina de guerra fosse derrotada.
Finalmente, reconhecer e louvar o trabalho de Nuno Carinhas, Nuno M Cardoso, todos os actores e todas as actrizes, sem excepção, e todos quanto contribuíram para esta excepcional produção teatral. Reconhecimento e louvor extensivos às direcções dos teatros de S. João e D. Maria pelo investimento que fizeram neste espectáculo. Reconhecimento e louvor ao teatro nacional, mesmo não se estando nos últimos dias da humanidade.
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