A Cornucópia

A Cornucópia

Se o teatro é uma das modalidade de colocar a ficção em acção,  o exercício de mostrar como as personagens contam, em directo, uma história, é também a sua estética, a intenção e o ponto de vista com que a história é contada. E o teatro da Cornucópia fez sempre bem isso ao longo de mais de quatro décadas, desde os tempos da rua da Palma, com O Misantropo. Mas na sua história estão igualmente Miséria e Terror do III Reich, Tambores na Noite e Um Homem é um Homem, de Brecht, Alta Áustria e Música para Si, de Kroetz, Casimiro e Carolina, de Horváth, Woyseck e Leôncio e Lena, de Buchner,  A Cacatua Verde e Menina Else, de Schnitzler, A Família Schroffreinstein, de Kleist, Don Carlos, Infante de Espanha, de Schiller, Quando Passarem Cinco Anos, de Lorca. E também ÍON, de Eurípedes, Júlio César, Hamlet, Ricardo III e A Tempestade, de Shakespeare, A Comédia de Rubena, de Gil Vicente, Três Irmãs e A Gaivota, de Tchekov. Ao todo, foram 126 espectáculos.

Tendo Luís Miguel Cintra sido o rosto do Teatro da Cornucópia, nunca deixou também de ser Cristina Reis. Ao teórico,  encenador, director de actores e intérprete estava-lhe indissoluvelmente associada a que interpretava a estética da companhia com os seus dispositivos cénicos, dando coerência interna a cada espectáculo. Porventura Casimiro e Carolina, Don Carlos, Infante de Espanha ou A Cacatua Verde representaram algumas das produções com maior projecção artística devido precisamente a essa combinação de talentos. Porém, a Cornucópia tem sido também uma escola de educação pela arte, e pelo teatro, em particular. E tem sido, igualmente, uma referência de promoção de  valores cívicos, ao colocar em cada escolha os critérios que melhor podem servir o desenvolvimento do espírito crítico de quem vai participar nas suas representações.

Portanto, não é admissível que o Teatro da Cornucópia dê por concluída a sua existência, considerando as razões invocadas por Luís Miguel Cintra. Nem a Junta de Freguesia de Santo António, nem a Câmara Municipal de Lisboa, tão pouco o Ministério da Cultura se podem resignar com uma situação destas. O que torna o assunto particularmente deplorável é ter chegado onde chegou. E todas estas entidades, mais umas do que outras, tornam-se responsáveis se este acontecimento  vier a verificar-se. Na presença de um risco com a dimensão cultural deste há muito que as medidas já deviam ter sido equacionadas e postas em prática. Por tudo isto, o menos que se pode exigir, e o verbo é exactamente este, é que rapidamente seja encontrada a solução para que o Teatro da Cornucópia, que são todos quantos nele trabalham, se mantenham em actividade e a fazer os espectáculos que nos habituaram.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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