Reprodução autorizada pela Câmara dos Deputados — publicado 22/06/2010 19h24, última modificação 24/06/2010 11h31 Autor desconhecido

Segundo argumento: os prestidigitadores de 1988.

Para além dos cálculos, nosso objetivo aqui é argumentar que o sistema de Segurança Social, deve ser considerada a principal conquista da Nova República. Delineado a partir de um ponto de vista universalista e desmercantilizante, ele inclui o seguro desemprego, a assistência social e o sistema de saúde, assumindo a responsabilidade de garantir a todo e qualquer ser humano condições mínimas de vida. De origem social-democrata, este entendimento, característico da era do Estado de Bem Estar Social, atende a um princípio distinto daquele que orienta, por exemplo, o Bolsa Família, que  atrela a concessão de benefícios a um grupo específico (foco), mediante o atendimento de um conjunto de condições.

Delineada em um contexto neoliberal, esse tipo de política nos ajuda a lembrar que este ideário não corresponde apenas a uma orientação econômica, incorporando uma ontologia estruturada a partir do princípio da eficiência e da livre-concorrência do mercado, incompatível com qualquer conceito de política social forjado a partir de uma compreensão material dos princípios de equidade e igualdade.

Sob a hegemonia neoliberal, o próprio conceito de política social, cede lugar a uma ideia de programa social direcionada a problemas específicos e contingentes que, uma vez sanados, devem encaminhar o indivíduo ao mercado, definido como o lugar apropriado para a conquista de sua dignidade e valor próprio. As principais características dessas iniciativas dizem respeito à introdução de uma lógica empresarial na “gestão” de benefícios que, por sua vez, deixam de ser entendidos como direitos, uma vez que restritos por critérios de tempo, espaço e por um conjunto de condições que demarcam a substituição da universalidade pela focalização em grupos específicos (DRAGO, 2010, p.325). Ademais, elas incorporam uma lógica de gerenciamento associada a contrapartidas (autofinanciamento), que, no plano normativo, ferem a compreensão apriorística de dignidade e valor incorporada na Constituição Federal e, no plano pragmático, ignora o fato que as parcelas mais pobres da população já pagam proporcionalmente mais impostos do que os demais segmentos (SOARES, 2003).

Sob este prisma, além de falaciosa, a controvérsia sobre insolvência do sistema de Seguridade Social é incompatível com o universo valorativo e a cultura jurídica que inspiram a Carta de 1988. Centrada na ideia de direitos fundamentais e de dignidade humana, o documento traz estes princípios em seu núcleo básico que dá unidade e sentido ao documento. Ambos determinam o afastamento em relação às abordagens privatistas e positivistas que acompanham o constitucionalismo liberal, delineando uma orientação societária e comunitária (CITTADINO, 1999, p.15). Sob este paradigma, a Constituição é entendida sob uma perspectiva material, como autocompreensão ética de um povo, forjada a partir de seus valores primordiais. Nas palavras de Cittadino, que em 1999 já nos esclarecia sobre as raízes comunitaristas da nossa Carta: “O fundamento ético do ordenamento jurídico se revela, precisamente, no momento em que a Constituição apresenta, no seu corpo normativo, um sistema de valores (CITTADINO, 1999, p. 46). A ideia de dignidade humana seria este fundamento.

É preciso, pois, ter clareza sobre esse ponto. Esse sistema de valores que supostamente corresponde ao nosso autoentendimento enquanto coletividade é incompatível com discursos que apresentam as garantias mínimas, oferecidas pelo sistema de Segurança Social, como um privilégio sujeito às oscilações da conjuntura econômica e dependente do esforço pessoal de seus beneficiários.

Diante deste dilema, nos cabe refletir se este princípio em algum momento se apresentou como um valor comum constitutivo da nossa identidade coletiva, ou se resultou apenas de uma prestidigitação dos Constituintes, que se viram diante da oportunidade de incluí-la na Carta, na expectativa de enraizá-lo no tecido social, mediante a conformação de um processo pedagógico de conscientização.

Como é difícil manter o espírito otimista em contextos como o atual, a segunda opção parece mais plausível. Acerca dela, todavia, cabe sublinhar que, mesmo sendo louvável, a estratégia careceu do esforço necessário para sua concretização. Na ausência de um processo de aprendizado societário capaz de disseminar valores como a solidariedade e a empatia, o potencial normativo e transformador do conceito de dignidade humana foi bloqueado e reduzido a uma fraseologia descolada de sentido público. Ninguém acredita nela.

Ainda que remonte à gênese da era moderna – como já nos alertava Max Weber, em A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (WEBER, 2014) –  esta ética orientada pela ideia de mérito e esforço individual assume patamares inéditos conforme observa-se a decadência global de outras ontologias, forjadas a partir de narrativas holísticas (não individualistas), solidárias e/ou igualitárias. No caso brasileiro, a hegemonia deste conjunto de valores bloqueou a penetração do ideário que forjou a Carta de 1988. Como realça Vitor Paro (1998), a Constituição estabelece, ao indicar o ensino fundamental como gratuito e obrigatório, que deve haver um mínimo de educação formal voltada para a cidadania, ou seja, “há um mínimo de conteúdos culturais de que todo cidadão deverá apropriar-se para não ser prejudicado no usufruto de tudo aquilo a que ele tem direito por pertencer a esta sociedade” (PARO, 1998, p. 9).

Cidadania, empatia, capacidade de lidar com a alteridade e mesmo com dilemas pessoais, não são inatos, nem se desenvolvem espontaneamente. Eles precisam ser ensinados. Em um contexto no qual o mercado de trabalho torna-se cada vez mais competitivo e exigente, famílias e escolas, as duas instituições responsáveis por engendrar esse processo de aprendizagem, não têm conseguido cumprir esse papel. Infelizmente nossa sociedade fez uma escolha em favor das demandas do mercado, sobre as da cidadania.

Mayra Goulart
mayragoulart@gmail.com

Professora de Teoria Política e Política Internacional e Vice-Coordenadora do Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Coordenadora do Observatório dos Países de Língua Oficial Portuguesa (OPLOP/UFF) e Pesquisadora Visitante do CIES (ISCTE/IUL).

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