Quatro mil seiscentos e trinta e dois excessos

Quatro mil seiscentos e trinta e dois excessos

Defendia o poeta Gedeão que o sonho é uma constante da vida. E durante anos cantámos essa constante, e continuamos a cantá-la, talvez porque, como figura poética, seja inultrapassável e resuma uma das características que nos distingue como espécie, sonhar, isto é, projectar a perfeição do desejo ou, quem sabe, aspirar á  sublime tentativa de alcançar o belo. Sendo o sonho uma constante, a constante da vida é, porém, a morte. Porque, até ver, ela é irremediavelmente irreversível. Talvez seja por isso que a espécie humana inventou, nuns casos, e descobriu, noutros casos, a medicina, essa engenharia que tem como finalidade prolongar a vida para que, no todo, ou em parte, o sonho individual permaneça e se possa cumprir.

Também por isso as sociedades foram aperfeiçoando o modo e a maneira como foram garantindo a todos o acesso a cuidados de saúde com a sofisticação tecnológica que hoje se conhece, até se chegar aos sistemas públicos de cobertura universal, de que o exemplo mais qualificado é o Serviço Nacional de Saúde, tal como o conhecemos desde 1948, na Grã-Bretanha, e desde 1979, em Portugal. Ao terem como uma das suas principais missões tratar e curar a doença, é nas oscilações do volume de óbitos verificados num dado período de tempo que podemos avaliar a contribuição que os serviços de saúde estão a dar para manter e prolongar a vida.

As variações da mortalidade em Portugal, na série temporal 2007-2016, podem ser consultadas em http://www.dgs.pt/dashboard/, em que o respectivo quadro permite analisar a sua distribuição e as incidências que se foram verificando ao longo da década, sobretudo nos períodos mais críticos, o verão, associado às ondas de calor, e o inverno, relacionado com o frio e os síndromes gripais, cuja combinação representam um risco acrescido para os grupos mais vulneráveis, principalmente os idosos. Apesar disso, e dado o conhecimento que se tem destes acontecimentos e da sua constância, torna-se possível prever e planear as respostas a estas situações de maneira a prevenir a ocorrência mais indesejável, a morte.

Nestas circunstâncias é inqualificável e inadmissível o que se passou durante o ano de 2016 no que respeita ao volume de óbitos verificados. Para uma média anual de 107 542 óbito naquela série temporal, nesse ano registaram-se em Portugal 112 174 óbitos, representando um excesso de 4 632 óbitos relativamente ao esperado. Na década, este foi o pior valor verificado. Os meses de Abril, Maio, Agosto, Outubro e Dezembro  foram os piores meses de todo o período, e só em dois meses – Janeiro e Fevereiro – não se registaram excesso de óbitos.  Comparativamente, o ano de 2007 foi o que apresentou melhores indicadores, sem nenhum mês com mortalidade excessiva. Bastaram dez anos para o SNS deixar de dar as respostas a que nos tinha habituado e que eram esperadas e exigíveis.

Centrados sobretudo na biomedicina e organizados segundo o modelo biomédico, que privilegiam sobretudo  os cuidados na doença, quando os sistemas de saúde, sejam eles predominantemente públicos ou predominante privados, apresentam estes valores há responsabilidades que têm de ser assumidas. E a pergunta que obrigatoriamente exige uma resposta é: o que não foi feito para prevenir este tipo de catástrofe, porque disso se trata?

 

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Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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