Populismo (I): Um Programa Analítico

Populismo (I): Um Programa Analítico

  1. Introdução

A designação «populismo» ou «populista» é amiúde utilizada na época contemporânea, seja nos meios de comunicação social e nas redes sociais como código comunicacional, seja como arma de arremesso nas lutas políticas. Tal etiqueta é usada seja para designar movimentos sociais, partidos políticos, atitudes políticas e até mesmo políticas públicas. Em regra, por um lado, tal conceito é utilizado sem grande ou mesmo nenhum rigor conceptual. Por outro lado, tal etiqueta é usada num sentido eminentemente pejorativo. Mesmo na academia, o conceito é criticado porque, por um lado, compreende fenómenos tão díspares que fica em dúvida a sua utilidade para diferenciar os fenómenos sociais e políticos; por outro lado, porque é um conceito demasiado permeado pela sua utilização nas lutas políticas.

Dada a sua recorrente utilização, bem como a sua frequente indefinição, fica demonstrada a necessidade de o clarificarmos. E, por isso, está de parabéns a Gradiva pela edição de dois importantes volumes sobre o tema, os quais serão objeto das minhas análises no presente texto e num outro que publicarei posteriormente no JL sobre o assunto.  O texto que hoje dou à estampa foca sobretudo no livro de Cas Mudde e de Cristobal Rovira Kaltwasser, Populismo, Uma Brevíssima Introdução, 2017. Esta obra foi escrita por dois eminentes cientistas políticos, especialistas internacionais no tema. Esta obra constitui-se como um programa analítico para o estudo do fenómeno do populismo. Digamos que, apesar da sua abordagem eminentemente analítica, os autores concebem o fenómeno do populismo como algo pejorativo, e desse ponto de vista poder-se-ia alegar que a abordagem está algo contaminada ideologicamente. Mas a Gradiva editou recentemente outro livro sobre o tema, escrito por uma outra proeminente politóloga (embora mais ligada à teoria política e com uma abordagem entre o pensamento e a ação, próxima da «teoria crítica»), Chantal Mouffe: Por um populismo de esquerda, 2019. Esta obra, também de grande qualidade, concebe o populismo mais com um programa político para a renovação da esquerda e para o combate à hegemonia neoliberal. Será objeto de um próximo artigo nosso no JL.  Apesar de cada artigo se focar mais num dos livros do que no outro, farei em cada um dos textos uma ponte entre os dois livros. Note-se que, quanto ao primeiro livro, por motivos de espaço deixo de lado alguns dos temas aí abordados (a mobilização populista e o papel do líder nos movimentos desse tipo).

  1. A definição de populismo e seu mapa mundi

Cas Mudde e Cristobal Rovira Kaltwasser começam por apresentar uma revisão das

diferentes conceções do fenómeno do populismo, para depois apresentar a sua. A sua definição pretende ser simultaneamente compreensiva, para englobar uma multiplicidade de casos ao nível empírico, e discriminante, para separar o populismo de outros fenómenos sociopolíticos. Usam uma «abordagem ideacional», ou seja, concebem o populismo como uma ideologia, um discurso ou uma mundivisão. Há várias características fundamentais do populismo. Primeiro, caracteriza-se por uma crítica ao poder estabelecido, às elites concebidas como corruptas e oligárquicas, por oposição ao povo virtuoso, cuja representação fidedigna é preciso restaurar ou construir. No tempo e no espaço, as definições do povo e das elites utilizadas pelos diferentes atores populistas podem incluir diferentes grupos (étnicos, socioeconómicos, a banca, a finança internacional, Wall street, o imperialismo americano, as elites tecnocráticas europeias, etc.), consoante os contextos e as estratégias de polarização utilizadas.

Em segundo lugar, o populismo é «uma ideologia de baixa densidade», a qual defende que as sociedades estão divididas entre dois grupos polares e tendencialmente homogéneos, «o povo puro» e «a elite corrupta», e que defende que a política deve ser baseada na vontade geral do povo. O facto de ser uma «ideologia de baixa intensidade» implica também que ele surge associado a «ideologias hospedeiras» que lhe dão a sua orientação política em termos de esquerda e direita. Assim, temos populismos mais associados à direita e/ou ao neoliberalismo (Carlos Menem, na Argentina, Fernando Collor de Melo, no Brasil, Alberto Fujimori, no Perú, ou Donald Trump, nos EUA), em termos de políticas económicas, e/ou ao nativismo nacionalista e tendencialmente xenófobo, em termos de definição do povo, ou seja, que define o povo em termos de pertença à comunidade nacional (o FPÖ, na Áustria, o PIS, na Polónia, o Fidesz, na Hungria, ou a Frente Nacional, em França). Mas há populismos mais alinhados à esquerda em termos de políticas económicas, como sejam os de perfil socialista na América Latina (Rafael Correa, no Equador, Hugo Chavez, na Venezuela, Evo Morales, na Bolívia, ou Manuel Lopez Obrador, no México) e na Europa (Podemos, em Espanha, Syriza, na Grécia, ou a França Insubmissa, na pátria gaulesa). Os populismos de esquerda tendem a definir «o povo» e «a elite» mais em termos socioeconómicos, como sejam os 99% espoliados e empobrecidos por oposição aos 1% oligárquicos; por vezes as elites são também associadas ao imperialismo americano, à banca, à finança internacional, e/ou à tecnocracia europeia (euroceticismo que partilham com o populismo de direita).

Note-se, porém, que a ideia de que o populismo concebe sempre o povo como uma entidade homogénea é contestada na proposta Chantal Mouffe: a autora assume a multiplicidade de estatutos e condições dos diferentes grupos socioeconómicos e socioculturais que constituem o povo (uma construção política que cabe aos atores políticos elaborar). Aliás, a politóloga sublinha a necessidade de a esquerda populista ir para além das demandas dos grupos socioeconómicos (ou seja, da tradicional clivagem capital-trabalho) articulando-as numa cadeia de equivalências (do estatuto de dominado e espoliado pelo neoliberalismo) com outras demandas socioculturais (de género, etnia, em defesa do ambiente, etc.).

  1. Populismo e democracia

Cas Mudde e Cristobal Rovira Kaltwasser reconhecem a inerente pulsão democrática no populismo, com o permanente apelo a que a política seja fundada na vontade geral, e consideram mesmo que o populismo pode ter um efeito positivo em regimes em vias de democratização. Todavia, consideram que o populismo é sobretudo «inimigo» da democracia liberal e, em menor medida, da ideia de representação. Por um lado, porque tende a rejeitar os contrapesos contra maioritários das democracias liberais (por exemplo, a ação dos tribunais e dos órgãos de comunicação social) por limitarem o poder da maioria. Por outro lado, porque tende a considerar que a vontade popular não se delega, e por isso usa frequentemente instrumentos de democracia direta ou referendária. Todavia, também aqui a proposta de Chantal Mouffe contraria a destes autores pois, ao contrário da extrema esquerda revolucionária tradicional ou de autores mais recentes como Antonio Negri e Michael Hardt, pretende «Um populismo de esquerda» inteiramente compatível com a democracia liberal e representativa. Um tema que desenvolveremos em próximo artigo sobre o assunto.

  1. Causas e respostas

Em matéria de causas e respostas, Cas Mudde e Cristobal Rovira Kaltwasser

apresentam-nos uma multiplicidade de causas (situadas quer ao nível da cidadania, quer ao nível da oferta política) para o aparecimento dos fenómenos populistas, bem como uma panóplia de medidas para os combater. No domínio das causas, destaco dois elementos: a política do cartel, ou seja, a convergência entre o centro-esquerda e o centro-direita em matéria de políticas, e a globalização e a europeização como elementos limitativos da soberania nacional e estímulos à convergência (neoliberal) em matéria de políticas. Todavia, para os autores, o problema nestes casos não é propriamente a convergência de políticas, limitando a clareza das alternativas, ou a limitação da soberania popular resultante da globalização e/ou da europeização, é antes a não assunção clara da bondade dessa convergência ao centro e/ou da bondade das políticas resultantes dos constrangimentos da globalização e/ou da europeização. Pelo contrário, Chantal Mouffe considera a política do cartel, a convergência ao centro e as limitações da soberania popular resultantes da globalização e/ou da europeização como alo pernicioso, pós democrático e resultante da hegemonia neoliberal. E propõe que o populismo de esquerda combata esses fenómenos contrapondo-lhes uma contra-hegemonia. Mas tal é matéria para próximo artigo no JL.

Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas», na primeira quinzena de outubro de 2019.

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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