O PS, a política de alianças e a orientação ideológica

O PS, a política de alianças e a orientação ideológica

No contexto do último Congresso do PS, vários dirigentes socialistas discutiram a política de alianças do PS e a sua orientação ideológica. Este assunto reveste-se da maior importância, seja porque para se perceber se a aliança de esquerdas será ou não reeditada após 2019, seja porque a política de alianças é crucial para definir o posicionamento ideológico dos partidos. Impõe-se uma reflexão sobre as potenciais virtudes e limitações de cada uma das opções.

Num estudo coordenado por Wolfgang Merkel, Social Democracy in Power, 2008, os autores demonstraram que, nos tempos de hegemonia neoliberal (ou seja, desde os anos 1980), os socialistas que menos se «neoliberalizaram» foram aqueles que mais alianças fizeram com os partidos à sua esquerda (França, Suécia, Dinamarca), e/ou que maiores conexões tinham com os sindicatos (Suécia e a Dinamarca). Pelo contrário; a maior «neoliberalização» ocorreu entre aqueles socialistas que mais alianças fizeram com a direita (Alemanha, Holanda) ou entre aqueles que corriam menores riscos da entrada de novos competidores à sua esquerda, por proteção do sistema eleitoral, em caso de inflexão para o centro (Reino Unido). Mais, como demonstrou José Maria Maraval, em Las Promesas Políticas, 2014, naquele período foram os socialistas que se moveram para o «centro do centro», não foi a direita que se moveu para o centro (antes pelo contrário). Este período de hegemonia do neoliberalismo é também a época do após segunda guerra mundial mais marcada pelo crescimento das desigualdades socioeconómicas.

Vários estudos têm demonstrado que o PS sempre foi um partido muito centrista, seja segundo as perceções dos eleitores, seja de acordo com a avaliação de especialistas, seja ainda analisando a questão através da análise de conteúdo dos programas eleitorais. Mais, por um lado, tal enviesamento para o centro do espectro esquerda-direita (por parte do PS) é dos mais pronunciados no seio da família socialista europeia; e, por outro lado, tal inflexão para o «centro do centro» agravou-se nos tempos de chegada da «terceira via» a Portugal, ou seja, com Guterres e Sócrates (ver “A New Era in Democratic Portugal? The 2009 European, Legislative and Local Elections”, South European Society and Politics, Vol. 15, Nº 4). Pelo contrário, o período do «austeritarismo», 2011-2015, é marcado por uma ligeira inflexão do PS para a esquerda, movimento este que se acentuou com a maioria de esquerdas. Ou seja, em Portugal, tal como noutros países, foram os socialistas que, sobretudo nos tempos da «terceira via», se afastaram da sua matriz ideológica tradicional, e as alianças à esquerda (tal como a «Geringonça») representam um certo retorno a essa matriz devido, precisamente, ao forte incentivo dado por essa política de alianças.

Passemos agora às opções em debate no Congresso do PS em matéria de política de alianças. Em primeiro lugar, é preciso dizer que todos os dirigentes socialistas que intervieram nesta discussão reconhecem que o «governo de esquerdas» tem funcionado muito bem, seja devido à recuperação de rendimentos dos assalariados e pensionistas, seja pelo cumprimento das promessas eleitorais, seja quanto à recuperação económica e à disciplina orçamental, seja ainda quanto ao cumprimento das regras europeias. Todavia, os contestatários desta solução, como Francisco Assis, fazem questão de sublinhar (num misto de miopia e de deselegância política) que a «Geringonça» funcionou bem porque os partidos da esquerda radical tiveram uma influência negligenciável na aliança (Público, 26/5). Outros, mais sofisticados, mas também não sendo propriamente entusiastas da aliança, como Augusto Santos Silva, fazem questão de sublinhar que os principais méritos deste governo (a disciplina orçamental, o cumprimento das regras europeias, o compromisso com a zona euro, o combate às desigualdades, o gradualismo e a moderação, etc.) são «marca genéticas do PS» (Público, 17/5). Apenas a chamada ala esquerda do partido (Pedro Nuno Santos, Duarte Cordeiro, João Galamba, entre outros) reconhece claramente que a aliança com a esquerda radical foi benéfica para a ação governativa do PS, e deve ser mantida (Público, 4/5 e 25/5).

Em segundo lugar, há a questão de como responder ao repto «Que fazer?» no próximo ciclo eleitoral em matéria de posicionamento ideológico do PS e da sua política de alianças. Neste domínio, alguns, que parecem conviver mal com o sistema de representação proporcional que nos rege…, pois defendem que o PS devia bater-se por uma maioria absoluta (Ascenso Simões, Expresso, 25/5; Manuel Alegre no Congresso). E, nesse caso, o PS devia depois (generosa e desinteressadamente, presume-se…) incorporar contributos desses partidos (situados à esquerda do PS) na sua governação, de 2019 em diante. Porém, neste domínio o grande debate situou-se entre Augusto Santos Silva e Pedro Nuno Santos (Público, 17/5 e 19/5; 15/2 e 4/5, respetivamente).

Pedro Nuno Santos disse fundamentalmente quatro coisas. Primeiro, que a crise dos socialistas na Europa deveu-se em boa medida aos efeitos da Grande Recessão, mas que eles também contribuíram para a mesma ao embarcarem, através da «terceira via», na criação do contexto que lhe subjaz (desregulação, introdução de lógicas de privatização nos serviços públicos, apoio a qualquer crescimento económico mesmo que de base especulativa e financeira, e, portanto, contemporização com a bolha financeira e imobiliária, etc.). Segundo, que os socialistas passaram a centrar as suas atenções nos chamados «vencedores da globalização» (classes médias e grupos mais educados e com maior capacidade de beneficiarem da globalização) descurando os seus bastiões tradicionais, na base da escala social, assim alimentando o populismo. Terceiro, que os socialistas deviam reorientar-se ideologicamente de modo a dar maior relevo ao papel do Estado (seja nos serviços públicos, seja em sectores estratégicos, etc.) como motor do desenvolvimento socioeconómico. Quarto, as alianças devem ser feitas preferencialmente à esquerda e, para tanto, o PS deve enjeitar a «terceira via», voltar a preocupar-se com «os de baixo» e usar o Estado como um instrumento do desenvolvimento.

Augusto Santos Silva, pelo contrário, acredita que não é desejável nenhuma inflexão ideológica, que o PS deve sobretudo «prosseguir o seu caminho», «radicalmente centrista, moderado e europeísta», não enjeitando a «terceira via» e apoiando o sindicalismo de compromisso (leia-se UGT), e não tanto o sindicalismo de protesto (leia CGTP).  Para este dirigente, a crise dos socialistas na Europa tem mais a ver com as dificuldades de demarcação face ao pensamento único austeritário e face ao discurso populista que cavalgou as dificuldades dos «perdedores da globalização». Mais, tal crise tem mais a ver com o declínio numérico dos bastiões tradicionais dos socialistas (os trabalhadores industriais, nomeadamente) do que com uma menor atenção desta família aos «de baixo».

É obvio que se o PS tiver maioria absoluta não precisará dos partidos à sua esquerda para governar, nem estes estarão disponíveis para apoiar o PS apenas para este branquear o seu centrismo aos olhos dos eleitores mais à esquerda. Tal solução é, pois, pouco credível: veja-se o que se passou com Hollande e os Verdes franceses. Quanto ao resto, claro que a aposta centrista de Augusto Santos Silva dará mais autonomia estratégica ao PS, mas terá como efeito colateral tornar mais difícil uma aliança com a esquerda radical e como mais provável, em caso de maioria relativa do PS, termos o PSD como partido de suporte no parlamento. Mais, nem a indiferenciação ideológica entre o PS e o PSD são bons para a democracia, pois favorecem o populismo, nem muito menos a colusão governativa entre as forças que deviam protagonizar alternativas de governo, pela mesma razão. Pelo contrário, uma certa inflexão do PS para a esquerda diminui a flexibilidade estratégica deste, mas aumentaria as probabilidades de aliança à esquerda, de combate ao populismo e de maior atenção (renovada) dos socialistas às pessoas da base da escala social, logo aumentaria as probabilidades de sucesso no combate às desigualdades. As intervenções do líder do PS parecem ir mais no sentido de Augusto Santos Silva, do que de Pedro Nuno Santos, seja pela ideia de que o PS continua onde sempre esteve, seja pela ideia do «partido charneira» e pela ausência de referência aos parceiros da maioria. Ou seja, tudo está em aberto e dependerá em larga medida da distribuição dos votos.

Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas», quinzena iniciada a 20 de julho.

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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