O erro de Francisco Assis

O erro de Francisco Assis

Tenho por Francisco Assis amizade, consideração e respeito, desde que o conheci, era ele jovem estudante de Filosofia no Porto, por ocasião da primeira campanha eleitoral de Mário Soares – uma campanha que tivemos de fazer a pulso, longe da euforia que seria a segunda… A sua coragem física tão bem evidenciada no célebre episódio em que teve de enfrentar uma grupo de energumenos disfarçados de “socialistas” em Felgueiras ombreia com igual coragem intelectual ao criticar a solução governativa a que carinhosamente chamamos “geringonça”, e que neste blog todos acarinhamos. É precisamente esse respeito que me leva a escrever estas palavras criticas a seu propósito

Creio que o erro de Francisco Assis, ao criticar o acordo do PS com os partidos à sua esquerda, é o de ter ficado imobilizado num passado recente que pinta com cores suaves. A sua tese principal é a de que o modelo social europeu resultou de uma convergência estratégica entre famílias políticas do centro-esquerda (a social-democracia) e do centro- direita (conservadores, democratas-cristãos, “liberais”). Esse fundo histórico desenharia então um quadro de governação ao qual se não deveria fugir. O problema é que esse é um argumento historicamente situado no passado, com dificuldades de se reproduzir no presente.

Não tenho grandes dúvidas que, em traços esquemáticos, o que sustenta a tese de Francisco Assis é verdade no que toca ao pós-II Guerra Mundial, período em que começou a nascer o que é hoje a União Europeia, e se prolongou no tempo pelo menos até aos anos em que Jacques Delors (ele próprio um exemplo vivo dessa aliança estrutural, vindo das águas do social-cristianismo em que acompanhou Jacques Chaban Delmas para as da social-democracia de François Mitterrand, que o alcandorou a uma posição de grande relevo na nossa história colectiva recente) liderou a Comissão Europeia. Só que esse consenso começou a ser quebrado com a vaga de fundo que Margaret Thatcher inaugurou na Europa e Ronald Reagan nos EUA. Vejamos.

Encaremos o palco político como um conjunto de dois eixos – um vertical, outro horizontal – que se intersectam, tal como uma rosa-dos-ventos, definindo assim quatro quadrantes. Dentro de cada um deles cabem posições diversas pois os valores que representam podem ser mais próximos do centro do desenho ou mais afastados, se mais radicais. Quer isto dizer: não estamos a lidar com oposição de dois conceitos, mas com uma gradação que aceita valores intermédios entre os elementos que servem de pólos.

Ponhamos na posição Norte o conceito de “Internacionalismo” ou “Universalismo”, e consequentemente na posição Sul, “Nacionalismo” ou “Particularismo”; no outro eixo, imaginemos que a Oeste está “Regulação/Correcção de mercado” e “Intervenção do Estado” e a Nascente “Liberdade de mercado” e “Estado mínimo”.

A construção do modelo social europeu realizou-se no quadrante noroeste: uma forte tendência para imaginar instancias internacionais de integração e cooperação (onde avulta a actual União Europeia, mas onde se poderiam colocar criações como a ONU, só para dar um pouco do “ar to tempo”) e uma correspondente tendência (de matriz keynesiana) para o intervencionismo estatal na regulação dos mercados e no erguer de políticas redistributivas Com maior ou menos intensidade, as famílias políticas do centro-esquerda (mais afoitas na regulação e nos efeitos redistributivos) e do centro-direita (normalmente mais comedidas na utilização dos instrumentos de política pública com efeitos correctivos da distribuição, mas atentas à necessidade de ouvir a famosa recomendação de Adam Smith sobre os “três deveres do soberano” no que toca ao funcionamento dos mercados em sociedades complexas e desenvolvidas) convergiram e mantiveram-se nesse quadro de referência. Ora, depois de Thatcher e Reagan, o centro direita deslocou-se (levando por arrasto grande parte da social-democracia) para o quadrante Nordeste. Ao crescente peso da internacionalização dos mercados (para darmos outro nome ao fenómenos por vezes fluido que é tantas vezes designado por “globalização”), a direita respondeu com políticas de desregulação (por exemplo, dos mercados financeiros ou do mercado do trabalho). Perante o peso crescente dos mercados internacionais, desarmou-se a defesa dos cidadãos face aos seus desequilíbrios. Veja-se, por exemplo, como a chamada “construção europeia” – que teve nas políticas de coesão desenvolvidas por Jacques Delors o ultimo assomo de solidariedade – estagnou ou retrocedeu. Enquanto nas economias da OCDE os Orçamentos de Estado nacionais se situam em torno de 40% dos respectivos PIBs, e portanto ainda dispõe de forte capacidade de interferir quer na regulação quer na redistribuição de rendimentos, a UE estagna nos 2% para não assustar os mercados, e inventa um modus operandi para o €uro que o transforma num instrumento poderoso de redistribuição ao inverso.

Não quero dizer que não houvesse necessidade de ajustar políticas face aos desenvolvimentos do mundo. Não professo nenhuma simpatia pelas avestruzes. Mas não posso deixar de realçar que, nas ultimas décadas, houve um resvalar do paradigma político matricial do modelo europeu do quadrante Noroeste para o quadrante Nordeste, no qual agora está ancorado.

Perante isto, como responder?

Há forças politicas que sempre se situaram no quadrante Sudoeste: nacionalismo e intervencionismo publico. É o caso do PCP e de tantos movimentos que surgem hoje por toda a Europa, e que tem sido desvalorizados como “populistas” de esquerda (como a France Insoumise) ou de direita (como a Frente Nacional francesa). Têm um elemento utópico num nacionalismo serôdio, mas ganham força devido aos avanços que, desde o quadrante Nordeste, o capitalismo desregulamentado faz, atacando elementos fulcrais do modelo social europeu. Não é por acaso que esses movimentos se alimentam do desencanto das classes mais populares, outrora objecto de políticas afirmativas de redistribuição e outras formas de protecção de direitos sociais. Outras forças de direita radical situam-se no quadrante Sudeste – será talvez o caso do no AfD alemão ou das correntes que pululam em países do antigo bloco soviético, como a Hungria ou a Polónia – nacionalismo e “mercados libertados da tutela estatal”. Há quem oscile, sabendo que o nacionalismo económico é uma receita para o desastre (como o entre-guerras demonstrou no século XX), mas que o estado-nação é ainda um refugio de democracia (isto é, de empoderamento dos cidadãos para tomarem regularmente decisões sobre o seu futuro colectivo), e que os ataques predadores do capitalismo globalizado, se não forem atalhados por instancias supra nacionais como a UE (que tem vindo a recuar nesse domínio), podem necessitar de intervenções nacionais.

Regressemos à nossa rosa-dos-ventos. É ainda possível sonhar com a reanimação do quadrante Noroeste – e há sinais de que alguma social-democracia está a arrepiar caminho e a recolocar-se nesse sector. Julgo que o caso do PS português ilustra essa realidade: internacionalista e defensor do papel regulador do estado. Mas é necessário dialogar com quem esteja fora – pelo menos com um pé… E nesse sentido, repugna mais o repisar de que há um paradigma comum com um centro-direita que marchou de armas e bagagens para Nordeste (internacionalismo e desregulamentação) do que ensaiar pontes com quem partilha não a dimensão internacional do problema, mas o da função primordial do estado moderno na regulação imperiosa dos mercados.

Quem mudou de paradigma foi, em primeiro lugar, a direita. E isso quebrou – ou devia ter quebrado – o consenso. Conseguiu hegemonizar o discurso político, e levou por arrasto sectores da social-democracia. A experiência – de tristíssima memória – de Durão Barroso à frente da Comissão Europeia é um exemplo dessa vitória de um novo paradigma. Não é hoje possível continuar a afirmar que centro-esquerda e centro-direita podem partilhar esse paradigma sem negar à esquerda o que ela tem de essencial: a crença de que é sempre possível fazer melhor e promover a igualdade de oportunidades através de políticas publicas afirmativas. O que é possível é dialogar também com quem difere da social-democracia num domínio importante, mas converge – em confronto nítido com a direita – no entendimento a dar às condições em que o funcionamento dos mercados não seja um elemento de predação social, como a governação de Passos Coelho e Portas tão bem evidenciou.

Por estas razões, meu caro Francisco Assis, não comungo da tua posição sobre a necessidade de manter o velho “arco de governação”: foi tempo em que fazia sentido. Hoje o mundo evoluiu – e nós temos de ter resposta para a inovação que seja fiel às raízes da nossa identidade política ousando a partilha de percurso com quem não tem o mesmo mapa, mas pode fazer parte do caminho ao nosso lado.

 

 

 

 

Rui Graça Feijó
ruifeijo@gmail.com

Desde que acompanhei os pais a um comício da CDE nas eleições de 1969, com 15 anos de idade, tenho deambulado pelas esquerdas (Pró-associação dos liceus do Porto, LCI, UEDS, MASP I e II, Clube da Esquerda Liberal, PS - de que fui vereador na CMPorto com o Fernando Gomes - campanhas presidenciais de Jorge Sampaio, Manuel Alegre - infelizmente só a segunda, que estava em Timor em 2005 como adjunto do Xanana - e António Sampaio da Nóvoa, e ainda MIC/Porto, CDA, Movimento 3D, Tempo de Avançar, Forum Manifesto. Um verdadeiro peregrino! Agora regresso aos tempos de vida no campo (em criança e em adulto) e olho pasmado para a Vaca Voadora. Ah! E sou historiados/investigador em ciências sociais e políticas, com uma recente agregação em "Democracia no Século XXI"" (FEUC/CES)

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