Maio de 68: Mudar de sociedade ou mudar a sociedade?

Maio de 68: Mudar de sociedade ou mudar a sociedade?

Em 2018, registou-se o cinquentenário dos acontecimentos do mês de maio de 1968, em França, os quais são fundamentais para se perceber a política nas democracias ocidentais. Os politólogos definem-nos como uma das «conjunturas críticas», na passagem da chamada «velha política», cujos conflitos centrais estão centrados na produção e na distribuição da riqueza, para a «nova política», centrada nas disputas em torno da qualidade de vida, da proteção do ambiente, das identidades, dos direitos das minorias e do grau de participação dos cidadãos nas decisões políticas. Esta «revolução silenciosa» tem estado associada a uma grande liberalização de costumes no ocidente, e ao surgimento da chamada «nova esquerda» (libertária). E teve um contraponto numa «contrarrevolução silenciosa» contra aquela onda liberalizadora na esfera sociocultural, associada à «nova direita» radical, fundamental para se entender o populismo de direita.

Há muito que os eventos de maio geraram uma significativa controvérsia interpretativa. Logo em 1968, uma eminente e respeitadíssima figura (universitária) da direita liberal europeia, Raymond Aron, expressava o seu ceticismo acerca dos eventos de maio em artigos publicados no Le Figaro, e numa longa série de entrevistas: A revolução inexistente, Bertrand, 1968. Talvez menos conhecidas são as críticas vindas da esquerda e, por isso, em boa hora foi publicado o célebre discurso de Régis Debray, de 1978, acompanhado de um muito útil conjunto de glossário e notas: Maio de 68. Uma contrarrevolução conseguida, Dom Quixote, 2018.  Régis Debray é um eminente filosofo francês, com um proeminente passado de pensamento e ação políticas para além da academia: foi amigo de Fidel de Castro e de Che Guevara, combateu com este na Bolívia, em 1967, onde esteve preso 4 anos; escreveu na senda das suas ações de guerrilha «Revolução na revolução», uma obra inspiradora da luta armada contra as ditaduras.

Segundo Patrick Rotman (Maio de 68 explicado àqueles que não o viveram, Guimarães editora, 2008), o maio francês pode ser entendida numa tripla perspetiva. Primeiro, o período que vai de 3 de maio de 1968 até 30 de junho de 1968. Temos aqui uma crise universitária com epicentro nas universidades de Nanterre e Sorbonne, com revindicações de melhores condições de estudo, de liberalização dos estilos de vida e de maior participação dos estudantes na gestão universitária, e um ciclo de repressão – contestação – repressão – cedência. Tal ciclo passou por prisões de estudantes que contestavam a guerra do Vietname, reações de solidariedade face aos colegas presos, fechamento e ocupação da Sorbonne (pela polícia); barricadas de estudantes em Paris e lutas campais com a polícia, nomeadamente contra o fechamento e ocupação da universidade. Acrescente-se que esta contestação do poder (gaulista) pelos estudantes, gerou uma onda de solidariedade por parte de muitos professores, da maioria da opinião pública, da oposição de esquerda e dos sindicatos. A 11 de Maio a Sorbonne é reaberta, mas é tarde de mais: o movimento operário, por via dos sindicatos, solidariza-se com os universitários e convoca uma greve geral para 13 de maio, a que se seguirá nos dias posteriores e, sobretudo, até aos acordos de Grenelle (dos sindicatos com o governo, com grandes concessões deste último perante àqueles), em 27 de maio, uma vaga de manifestações e greves contestando o status quo. A greve geral de 1968 é a maior na história de França, segundo Rotman, e a extensa vaga grevista só é comparável aquela que veio secundar as reformas propostas pelo governo da Frente Popular eleito em 1936, segundo Aron. Além da solidariedade com os estudantes, às reivindicações de melhores salários e de melhores condições de vida juntavam-se demandas de maior participação dos trabalhadores na gestão das empresas e na concertação social (até aí inexistente), no limite autogestão, além de uma contestação mais difusa do próprio capitalismo (ocupações de fábricas, sequestro de dirigentes, batalhas campais com a polícia).

Este período termina com a segunda volta das legislativas antecipadas, nas quais os gaulistas da UDR (no poder) vencem com 59% dos 485 lugares na Assembleia Nacional; a esquerda comunista, 7%, e a «federação da esquerda democrática e socialista», 12%, são severamente derrotadas. O «partido da ordem» esmaga eleitoralmente as minorias contestatárias, segundo Raymond Aron, tal como em episódios anteriores (1792, 1848, 1871).

As duas outras formas de considerar o maio de 68 são, segundo, uma abordagem mais sociológica que analisa o maio francês no conjunto dos anos sessenta e como um marco de transformações sociais fundamentais. Uma terceira abordagem, na linha do filme de Chris Marker (Le fond de l’air est rouge & Sixties, 2 DVD, 1977 e 2013), enfatiza o contexto político global dos anos 1960-70: a descolonização; a oposição à guerra do Vietname; a libertação de Cuba da ditadura de Fulgêncio Batista; as lutas de guerrilha na América Latina; a cisão no movimento comunista internacional com o conflito sino-soviético e a divisão entre marxistas-leninistas e maoistas (P. Artiéres & M. Zancharini-Fournel (orgs.), 68 Une Histoire Colective (1962-1981), La Découvert, 2008). O maio francês tinha vários congéneres: o movimento hippie e o consumo de drogas, associados à música rock e a estilos de vida mais libertários, e o movimento de luta pelos direitos cívicos, ambos nos EUA; os novos movimentos sociais (feministas, negros, LGBT, pacifistas); os movimentos nacionalistas, por exemplo no Quebec e na Argélia;  os Provos, na Holanda; uma forte esquerdização da política em vários países, nomeadamente com o ascendente da extrema esquerda maoista e trotskista.

Debray fala de «uma contrarrevolução conseguida». Primeiro, pelo unanimismo comemorativo nos primeiros dez anos de maio, que unia gaulistas e comunistas, nomeadamente (Michel) Debré, «gaulista histórico», várias vezes ministro, e (Georges) Séguy, Secretário-Geral da CGT, 1967-82. Segundo, porque apesar das transformações liberalizadoras na esfera sociocultural, tal em nada afeta o sistema capitalista, sendo até funcional para ele, tratando-se de pôr em sintonia a sociedade (liberalismo social) com o mercado (liberalismo económico). E a prova disso é que liberalismo social e liberalismo económico não são  incompatíveis; por outro lado, é na senda do longo maio que virá a maior vaga de privatizações, a criação de grandes grupos empresariais e a ascensão do neoliberalismo. Terceiro, porque se tratou de uma «mutação» e não de uma revolução (um dos slogans em Nanterre), ou seja, sem uma lógica de oposição e confronto, sem pilotagem e plano, indiferente ao governo que se seguia, e daí o resultado das legislativas de junho de 1968.  Quarto, porque em vez de uma esquerdização da política e de uma contestação do capitalismo, sugerida pelo ascenso das correntes maoístas e trotskistas, tivemos antes uma americanização da política francesa (e europeia) com os ventos libertários do movimento hippie e dos novos movimentos sociais.

É verdade que o legado atual do maio francês de 68 é mais a onda arco-íris associada à «nova política», aos novos movimentos sociais e à política das identidades, do que a vaga vermelha das greves operárias e da contestação do capitalismo, eivada de esquerdização da política e de influências de um certo socialismo terceiro-mundista. E também é verdade de que o triunfo da «nova política» sobre a «velha política» pode ser lido como uma certa americanização dos sistemas políticos ocidentais, com a subalternização das discussões sobre as desigualdades socioeconómicas e a centragem na política das identidades. Desse ponto de vista, pode considerar-se que o maio francês mais do que trazer uma «mudança de sociedade» veio trazer «mudanças na sociedade» (Rotman), ou seja, foi mais transformadora do que revolucionária. Todavia, assacar ao longo maio de 68 francês o refluxo do esquerdismo e da contestação anticapitalista, bem como o triunfo do neoliberalismo, parece-me manifestamente exagerado: as raízes desses refluxos e desse triunfo deverão antes ser encontradas no declínio das taxas de lucro, nas crises económicas, na retirada das elites económicas do consenso social democrata, nos limites do keynesianismo, e, por último mas não menos importante, no desencanto com as experiências ditatoriais socialistas (as atrocidades e a pulsão ditatorial na revolução cultural chinesa e no Camboja, no Arquipélago do Gulag, etc.).

 

Artigo publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna mensal «Heterodoxias Políticas», na primeira quinzena de Janeiro de 2019 (2 de Janeiro de 2019 em diante)

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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