19 Set Lisboa cidade dual
A deriva neoliberal dos partidos sociais-democratas e dos que mantiveram a designação de “socialistas”, teve sobretudo a ver com a adopção de um posicionamento ideológico de que “não haveria alternativa” ao modelo político-económico dominante, tendo em conta o fracasso do “socialismo real” (posto em evidência com a implosão da União Soviética), as suas repercussões à esquerda, e a globalização galopante, sob o comando do capital financeiro. Não é por isso de surpreender que os seus expoentes máximos (onde pontificou Tony Blair ao nível europeu – com a autointitulada “Terceira Via” – e, entre nós, Sócrates) tenham acabado por ser os continuadores das políticas económicas de Reagan e Thatcher, conduzindo a UE para o beco que a crise financeira veio pôr a nu. Segundo estes actores da chamada “esquerda possível”, tratava-se essencialmente de assegurar – tanto quanto a relação de forças o permitisse – um “rosto mais humano” à exploração do factor trabalho, tentando compensar os efeitos da deslocalização das empresas europeias para países com baixos salários e sem direitos laborais, com alguns apoios sociais e a proposta de uma 4ª revolução industrial. As alianças políticas que tal orientação exigiu, levou ao progressivo abandono da matriz fundacional desses partidos e à sua profunda descaracterização perante o seu eleitorado, ao ponto deste migrar para a abstenção, os partidos populistas ou a própria direita, já que o original é sempre preferível à cópia.
A situação que se vive actualmente em Lisboa é um exemplo dessa deriva e da ideia de que “não há alternativa” ao jogo do mercado imobiliário, remetendo para a câmara municipal (CML) um papel de simples potenciador de investimentos no sector, ao mesmo tempo que tenta assegurar apoios sociais aos mais desfavorecidos e aos marginalizados da sociedade do lucro imediato e da competição sem limites. É por isso que, contrariamente ao que os seus responsáveis querem fazer crer, não se trata de inevitabilidades a que a CML não pode dar resposta – porque ultrapassam a sua esfera de atribuições e competências ou os recursos de que dispõe – mas sim, em boa parte, o resultado de políticas municipais que optaram claramente por um dos lados (o dos promotores imobiliários) ou não tiveram em devida conta os seus efeitos perversos, num momento em que as condições de contexto de crise se começassem a alterar. Não se está com isto a negligenciar as pressões que o início da recuperação económica e o (recente) enorme acréscimo do turismo provocaram no mercado imobiliário da cidade, situações que obviamente não são imputáveis à câmara (ainda que esta tenha “embarcado” na folia dos preços e tenha procurado obter o maior lucro possível com o seu património). Mas esses factos não podem servir de cortina de fumo para as responsabilidades que a CML tem na degradação de alguns aspectos essenciais para a qualidade de vida dos que vivem, trabalham ou recorrem à cidade para aí aceder a um conjunto de bens e serviços que não lhe são oferecidos nos outros concelhos da área metropolitana de Lisboa.
O preço da habitação – tanto na venda como no arrendamento – subiu nestes últimos três anos mais de 30% em média, com um máximo de 60% no centro histórico, chegando em algumas zonas da cidade a atingir valores que comparam com o das cidades europeias mais caras. Transações recentes chegaram a mais de 6 mil € por m2, com os valores médios nas zonas mais centrais ou procuradas a rondar os 4 e 5 mil €. Por sua vez, no arrendamento, um T1 com 100 m2 pode custar entre mil e 1300 € por mês, com valores médios de aluguer nas zonas mais consolidadas e centrais a variar entre os 1500 e os 1700 €. Para um país onde o salário mínimo não chega aos 600 € por mês e onde o rendimento da classe média se situa entre os 1200 e os 1800 € brutos por mês, com um valor médio de 1380 € na AML, percebe-se bem quem pode aceder ao mercado de arrendamento em Lisboa … Não é por isso de estranhar que a cidade tenha perdido mais de 45 mil habitantes desde o recenseamento de 2011 e que seja a que expulsou mais jovens em toda a área metropolitana.
À primeira vista parece que se trata apenas do resultado do funcionamento da tal “mão invisível” que catapultou o mercado imobiliário para valores muito acima do que a esmagadora maioria dos portugueses pode pagar, e em particular os lisboetas e os que gostariam de cá viver. A procura associada a estrangeiros e ao sector do alojamento local (mais de 9 mil), a que se somou o forte relançamento da hotelaria (mais 7 mil quartos e 150 mil m2 aprovados no actual mandato), explicam em parte os preços que estão a ser praticados no mercado, para deleite dos proprietários e das agências imobiliárias.
Mas será que Lisboa só tem propriedade privada? E então o mencionado enorme património municipal, sempre chamado para servir de suporte à contração de empréstimos por parte da CML, mas que quando se trata de o mobilizar para políticas públicas de habitação a preços controlados ou aceitáveis (face ao poder de compra médio da população), parece que se evapora? Não se poderiam ter utilizado esses milhares de fogos e edifícios para oferecer uma alternativa ao mercado privado? Até parece que sim, quando agora (a escassos meses das eleições) é a própria câmara a anunciar o lançamento de um programa de 7 mil fogos para esse tipo de oferta, a desenvolver em 10 anos, tantos quantos o vereador responsável pela pasta tem no executivo, mas que só agora se lembrou de que “é preciso fazer habitação pública a preços acessíveis e apostar na classe média”. Porque não o fez quando os sinais de aceleração do mercado eram por demais evidentes? A resposta está nas opções que o município fez (conscientemente) neste domínio.
Num período de grande endividamento municipal (2007/14) e de crise económica e financeira que o país atravessava, a estratégia seguida foi a de procurar captar o máximo de investimento privado para reabilitar um património edificado que se degradava ano após ano. Para isso a CML concentrou a sua intervenção em três grandes áreas: a recuperação do espaço público; a redução da carga burocrática e fiscal para as obras de reabilitação urbana; e a oferta de equipamentos que reduzissem os custos de contexto para as famílias. Com a retoma económica e o mercado turístico em alta, estas políticas produziram resultados que depressa se verificaram perniciosos para o conjunto da cidade, ao ponto de termos hoje quarteirões inteiros na Baixa e no Chiado transformados em hotéis ou condomínios de luxo, enquanto se verificava a expulsão para as periferias (onde os preços são entre 50 e 60% mais baixos) dos residentes mais idosos e vulneráveis e dos jovens à procura de uma primeira habitação. Isto é, ao não serem acompanhadas de politicas municipais de habitação acessível, a recuperação e embelezamento do espaço público e a melhoria de alguns serviços e equipamentos urbanos (jardins, escolas, jardins de infância, etc.) estas politicas da CML mais não fizeram que contribuir para a valorização do património imobiliário, dirigindo-o para os segmentos mais valorizáveis e desviando-o da função social que também deve assegurar, não poupando sequer algum comércio mais emblemático do centro da cidade (as chamadas “lojas com história”). Ora era exactamente aqui que o património municipal devia ter entrado, permitindo uma alternativa a um mercado fortemente inflacionado. Ao mesmo tempo, ao invés do que se faz em cidades onde o fenómeno do turismo de massas teve aumentos brutais (como Viena e Barcelona), a CML optou por não regulamentar urbanisticamente estas operações imobiliárias, deixando o mercado à rédea solta. Pelo contrário, procurou também ela aproveitar o boom imobiliário, disponibilizando o maior número possível de imóveis para os vender em hasta pública, nem que para isso tivesse de realojar os seus inquilinos, chegando ao ponto de hipotecar os programas de realojamento social que “outra parte” da câmara procurava implementar. De facto, a maioria dos fogos municipais dispersos e até fogos em bairros municipais foram utilizados para libertar imóveis para serem posteriormente vendidos a quem desse mais, sem qualquer tipo de limitação de uso ou de valores de renda, contrariando na prática o próprio Plano Municipal de Habitação e os esforços denodados da vereadora com esse pelouro (das 1700 casas entregues, menos de 20% é que se destinaram ao alojamento de população carenciada) que viu a sua política de relançamento da habitação a preços acessíveis posta em causa. Os resultados estão à vista de todos os que não têm a visão toldada pelos preconceitos “ideológicos” de que os “nossos” são sempre os “bons” e todos os “outros” inimigos a abater.
No domínio dos transportes e acessibilidades também não se atendeu à mudança de contexto e privilegiou-se o embelezamento à resolução dos problemas que, face ao colapso dos transportes públicos (menos 25,6 milhões de passageiros transportados no ML desde 2011 e 43 milhões na CARRIS, dos quais meio milhão no 1º semestre deste ano) e ao acréscimo do tráfego automóvel (ainda assim apresentando valores muito inferiores aos registados antes da crise), se agravaram ao ponto da cidade ficar paralisada em muitas das suas avenidas e alguns arruamentos mais locais passarem a ter uma procura muito acima do desejável, com os evidentes inconvenientes para a população e o comércio a que dão acesso.
Para se ter uma ideia das opções erradas da CML no domínio da mobilidade atente-se ao facto de que só a intervenção no eixo central custou mais que 5 anos de investimento no Programa BIP/ZIP (destinado aos bairros mais carenciados da cidade, e que envolveu mais de 1020 projectos e actividades entre 2011 e 2017); não se prosseguiu o programa de construção de parques e lugares de estacionamento para residentes (mais de 4 mil lugares no mandato anterior); e não se aproveitaram as intervenções na rede viária para reabilitar as redes de saneamento e de água existentes no subsolo, ao contrário do que vinha sendo feito, optando-se agora por meras intervenções de cosmética à superfície. Isto para não falar do protelamento do projecto das bicicletas eléctricas partilhadas (só agora em fase de teste e com um investimento 10 vezes superior ao previsto e sem articulação com a rede de transportes colectivos e o estacionamento em termos de bilhética) e do programa de estacionamento dissuasor, que passou dos 11 mil lugares previstos e disponibilizáveis em 2013 com pagamento mensal integrado com o da CARRIS e ML, para uns simples 4 a 6 mil, com pagamento diário e a construir … no próximo mandato! Enquanto isto a CARRIS lançou carreiras de bairro em sobreposição com a oferta do sistema “Porta a Porta” operado pelas freguesias, em vez de ter concentrado os seus escassos recursos no reforço do serviço das zonas não servidas pelo ML e na reposição da oferta eliminada pela anterior governo.
A culminar este desnorte em termos de mobilidade e transportes (cuja tutela está repartida por cinco vereadores) temos a proposta de criação de uma linha circular para o ML, a partir da fusão da linha verde com parte da linha amarela, que passará a ser um “ramal” entre Odivelas e Telheiras. Contrariando todos os estudos e projectos anteriores realizados pelo ML e a própria orientação dos seus técnicos de exploração, em vez de dar prioridade ao prolongamento da linha Vermelha para Campolide e Campo de Ourique (dois dos bairros mais populosos de Lisboa que ainda não estão servidos pelo ML, apesar do seu túnel estar já no Palácio da Justiça), da linha Verde para Alcântara (assegurando aí a ligação directa da linha de Cascais ao eixo central da cidade) e da linha Amarela para Carnide e Benfica, a CML defendeu junto do governo um investimento superior a 200 milhões de Euros para potenciar a valorização imobiliária de terrenos que se encontram disponíveis ou para renovar o seu uso ao longo da nova linha, como sejam junto ao interface do Campo Grande, os terrenos da antiga Feira Popular, os de Picoas, do quartel de bombeiros da Av. D. Carlos I e os do aterro da Boavista, para além dos existentes na Av. Almirante Reis, que assim se integra no eixo mais rentável da cidade. Ao invés de preferir servir a população residente em Lisboa, a CML optou por criar uma linha de metro destinada a promover os negócios imobiliários destinados a escritórios, habitação de luxo e hotelaria, mesmo que para isso tenha de diminuir a qualidade de serviço em toda a rede do metro e enfrentar problemas construtivos que não teria com as prioridades de expansão anteriormente aprovadas.
Caminhou-se assim para uma cidade dual. De um lado a cidade dos bairros municipais, dos congestionamentos de tráfego insuportáveis e dos transportes que não funcionam. Do outro, a cidade dos grandes negócios imobiliários para os estrangeiros e os mais ricos, com passeios e arborização generosos e parques de estacionamento a preços proibitivos.
Parece que uma certa opinião publicada e alguns actores políticos preferem não ver, não ouvir e não ler, para melhor poderem ignorar a realidade que têm perante os seus olhos. Pela minha parte mantenho-me fiel à letra afirmativa da canção de protesto dos anos 1970’ e não posso, nem quero, ignorar. Por isso defendo a necessidade de pôr termo a esta deriva neoliberal na CML e apoio a constituição de uma maioria de esquerda que permita, à semelhança do que se verifica para o governo do país, concretizar as propostas que melhorem efectivamente a vida em Lisboa, para todos os que nela vivem, querem viver, trabalham ou visitam. Uma cidade realmente para todos e não apenas para uns quantos privilegiados que podem fazer face aos preços especulativos que hoje se praticam em Lisboa.
Fernando Nunes da Silva
(Professor universitário e ex-deputado municipal dos “Cidadãos por Lisboa”)
Uma versão bastante mais curta e simplificada deste artigo foi publicada originalmente no jornal Expresso de 3-9-2017
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