Eleições ao perde-ganha: Trump é o «vencedor errado», ou seja, mais um resultado eleitoral patológico nos EUA desde 2000

Eleições ao perde-ganha: Trump é o «vencedor errado», ou seja, mais um resultado eleitoral patológico nos EUA desde 2000

Pela segunda vez ao longo de dezasseis anos, há um «vencedor errado» nas eleições presidenciais americanas. Primeiro com George W. Bush face a Al Gore, nas eleições presidenciais americanas do ano 2000, este venceu com cerca de 540 mil votos a mais face a George W. Bush, mas Bush ganhou no colégio eleitoral. Agora foi a vez de Donald Trump perder no voto popular face a Hillary Clinton, onde o candidato do Partido Republicano teve menos um 1 milhão de votos do que o candidato do Partido Democrata, mas ganhar no colégio eleitoral. A isto chama-se, na sistemática eleitoral (e não tem nada que ver com preferências ideológicas!), um sistema que gera «vencedores errados». Porque as eleições não são ao perde-ganha, ou seja, nas eleições o resultado deve traduzir a vontade popular, sobretudo quando há eleição popular do órgão a eleger (mesmo que indireta), como é o caso. «Vencedores errados» é uma claríssima patologia dos sistemas eleitorais. Foi por causa de o sistema deles, um sistema de maioria relativa a uma volta (como o americano) só que em círculos uninominais (e não em círculos plurinominais como nos EUA), gerar sucessivos «vencedores errados» que os neozelandeses decidiram mudar o sistema de votação deles de first-past-the-post (sistema de maioria relativa a uma volta) , para um sistema de membros misto proporcional, em 1996, depois de muitas, mas mesmo muitas décadas, com o FPTP.

Mas porque é que isto aconteceu? Não é por causa do voto indireto via colégio eleitoral! Este implica que os eleitores votam em cada estado para eleger os membros do colégio eleitoral, e este é que elege o presidente: 538 grandes eleitores correspondentes a 435 deputados e 100 senadores, mais 3 por Washington DC, repartidos pelos 50+1 (W-DC) Estados. Na verdade, desde o século XIX que os grandes eleitores (os do colégio) votam sempre no mesmo candidato pelo qual se apresentaram para ganhar o voto popular em cada Estado. O problema é que, com as exceções dos Estados do Maine e do Nebraska, o método para determinar o vencedor em cada Estado é o do «o vencedor leva tudo» (the winner takes it all) mas aplicado em círculos em plurinominais, alguns com muitos lugares mesmo.  Ou seja, este método é o mais iníquo de todos porque, por exemplo, se um candidato tiver apenas mais 1 voto do que o segundo classificado ganha todos os 55 grandes eleitores da Califórnia, ou todos os 38 lugares to Texas. Um tal sistema gera brutais distorções, nomeadamente gera «vencedores errados», e curiosamente o Doutor Salazar na sua magnifica ditadura do Estado Novo também o aplicava… Portanto, para mudar o status quo, não era preciso mudar o sistema de colégio eleitoral, era apenas necessário que se aplicasse um método proporcional para a distribuição dos grandes eleitores pelos candidatos em cada Estado. Claro que isto poderia levar à subversão do tradicional bipartidarismo americano, uma construção artificial das regras do jogo… como é óbvio. O mais preocupante, porém, é o facto de o Partido Democrata nada dizer sobre isto, tão agarrado que está ao statu quo… mas isto é mau demais para a democracia e alimenta muito o populismo (!), precisamente porque as eleições não são ao perde ganha… et pour cause… Portanto, isto diz muito da miséria ideológica e política em que está o Partido Democrata.

Preocupante é o facto de pessoas com responsabilidades, como Nuno Garoupa (ex-diretor do Think Tank alinhado à direita que dá pelo nome de Fundação Francisco Manuel dos Santos), quererem confundir isto com o que se passou em Portugal nas legislativas de 2015. Disse ele na sua página do Facebook: «Não deixa de ser absolutamente hilariante ver apoiantes da geringonça criticarem o sistema político americano pelo facto da candidata com mais votos não ser eleita Presidente (Nuno Garoupa, Facebook, 10-11-2016, 10h53m)».

Mas na verdade isto não tem nada a ver com a situação portuguesa, e só por má fé, demagogia ou ignorância (venha o diabo e escolha o fator…) se pode compará-las. Primeiro, no caso americano, os eleitores estão a escolher popularmente o governo num regime presidencial; em Portugal, os portugueses elegeram o Parlamento e daí é que se forma, de forma mediada (pelo Parlamento e pelo PR), o governo. Segundo, D. Trump teve menos um milhão de votos do que H. Clinton; em Portugal, como já expliquei noutro local, «no que respeita às legislativas de 4-10-2015, os votos e mandatos (4) dos círculos da emigração ainda não foram escrutinados e distribuídos, mas do total contado sabemos hoje que a direita (PSD & CDS-PP: PàF) perdeu cerca de 700 mil votos face a 2011, teve 38,3% dos votos e 104 mandatos parlamentares (45,2%), e perdeu seguramente a maioria absoluta para governar a solo (116 lugares ou mais). Pelo contrário, a oposição averbou 61,7% dos votos. Só a oposição de esquerda com deputados eleitos (BE, PAN PCP-PEV/CDU e PS) reuniu 52,26% dos votos e soma já 122 lugares. Nestas condições, numa qualquer democracia digna, se a força política vencedora o for apenas com maioria relativa terá de conseguir aliados para governar. Caso contrário, poderá ser o segundo partido mais votado a pilotar o governo, se for capaz de liderar uma alternativa no Parlamento, e o vencedor com maioria relativa pode passar à oposição. Esta é uma solução não só plenamente democrática como muitíssimo comum.» Dou vários exemplos no artigo citado (Timor Leste, Espanha), e na altura outros colunistas, como Pedro Silva Pereira no Diário Económico, deram vários outros exemplos semelhantes em outros governos europeus, em 2015 (Luxemburgo, Dinamarca), nomeadamente.

Portanto, a situação portuguesa nada tem que ver com a situação americana, porque a maioria parlamentar teve maioria de votos e tem maioria de lugares no Parlamento, por isso e porque foi capaz de se entender é que pôde formar governar, enquanto que nos EUA há um «vencedor errado» (teve menos votos do que o que perdeu na «secretaria», no colégio eleitoral, digo). Também é incomparável um sistema presidencial, em que o governo é eleito popularmente, com um sistema parlamentar ou semipresidencial, em que o governo não é eleito popularmente, é antes escolhido pela maioria parlamentar (com a adicional mediação do PR num regime semipresidencial como o nosso). E neste comentário não há nada de normativo, tirando eu valorar efetivamente que as eleições não sejam ao perde-ganha…, nem nenhuma preferência ideológica imiscuída.  De todo em todo!

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

No Comments

Sorry, the comment form is closed at this time.