E a morte fica-lhes tão mal

E a morte fica-lhes tão mal

O que se está a passar no sector da saúde, em que não há dia que não seja alvo de notícias pelas piores razões, é o resultado da ausência de vontade política para se proceder à modificação do modelo organizacional do SNS. A actual tutela tem vindo a insistir na aplicação de medidas que serão sempre casuísticas e de efeito limitado enquanto a geometria e o relacionamento das peças que constituem o serviço público de saúde não se alterarem, uma vez que vão encontrar sempre pela frente poderes, práticas e procedimentos cujas lógicas estão  exercitadas, orientadas e sedimentadas para  as absorver e reduzir imediatamente a cinzas. A isto chama-se desperdício, investimento não reprodutivo, fogo de vista, atamancamento. É uma espécie de andar a semear relva numa plantação de eucaliptos.

Passado mais de um ano, está à vista que se a situação está como está é porque  a João Crisóstomo tem no consenso de Belém e na renúncia de S.Bento os seus melhores aliados para continuar a semear relva à volta dos eucaliptos, e os eucaliptos, neste caso, é o modelo organizacional do SNS. Se Belém defende que as PPP são para continuar, a João Crisóstomo acha-se com autoridade para abrir um concurso de faz de conta para continuar tudo na mesma. Se as urgências deixam de dar resposta e fazem as primeiras páginas dos jornais, a João Crisóstomo, porventura surpreendida com o fenómeno, decide alargar o horário de funcionamento dos centros de saúde e criar gabinetes de crise. Com 70,5/100 000 habitantes de ida às urgências, Portugal tem mais do dobro do valor da OCDE (30,8/100 000), mais do que o triplo da Bélgica (20,8/100 000), o quíntuplo da Polónia (14,5/100 000), o sêxtuplo da Holanda (12,4/100 000) e o óctuplo da Alemanha (8,8/100 000) https://www.publico.pt/2015/11/30/sociedade/noticia/em-21-paises-da-ocde-portugal-e-o-que-tem-mais-admissoes-nas-urgencias-1715951. Este é o indicador que identifica  o estado de organização e resposta do SNS e o que melhor sumariza a situação em que actualmente se encontra.

Se há um excesso de óbitos, já considerando a sazonalidade das ocorrências, a João Crisóstomo  remete-nos para o site da DGS, sem outra explicação, e nele pode verificar-se que na série temporal do mês de Dezembro de 2007-2016, foi em 2016 que se verificou o maior volume de óbitos da década, com 11 745 ocorrências, mais 24% do que no ano anterior e mais 12% do que a média da série temporal, mas o mesmo acontecendo nos meses de Abril, Maio, Agosto e Outubro. Ou seja, em quase metade do ano de 2016 verificou-se um excesso de óbitos relativamente à média dos meses homólogos da série temporal (http://dgs/dashboard), correspondente a 3 252 óbitos, dos quais 1 222 ocorreram durante o mês de Dezembro. Ora este dado devia fazer corar de vergonha qualquer responsável da João Crisóstomo.

Imagine-se agora que localmente se verificava a participação dos actores sociais na coordenação dos serviços públicos de saúde, centros de saúde e hospitais. Não seria de admitir que fossem encontradas soluções que se ajustassem aos interesses das populações, uma vez que as decisões eram partilhadas e responsabilizavam todas as partes? Presumo que na João Crisóstomo já se tem conhecimento da realização, em Paris, nos dias 16-17 de Janeiro,  de um fórum dos ministros da Saúde da OCDE. E qual é o tema do fórum? Nem de propósito: The next generation of health reforms. People at the center. The future of health. O consenso actualmente existente é capaz de torcer o nariz à ideia, mas o bom senso é capaz de a aplaudir. É que esta abordagem representa um sério revés para o modelo biomédico dos sistemas de saúde, que tanto dinheiro tem dado a ganhar e tão pouco tem feito pela promoção da saúde.

Haver um ministério capturado por Belém é o equivalente a existir uma espécie de delegado do bloco central no governo a preparar os aposentos para o caso de virem a  ser necessários, ou as circunstâncias a tal se proporcionarem. Esta renúncia do primeiro-ministro  a um sector particularmente sensível da governação em nome de um certo funambulismo de Estado vai ter seguramente um custo, como se pode calcular. Será aconselhável, por isso, para não ser apanhado desprevenido,  encomendar ao ministro das Finanças o orçamento desta renúncia. Porque os custos da operação reúnem todos os ingredientes para terem que vir a ser pagos com língua de palmo, como era costume dizer-se.

Cipriano Justo
cjusto@netcabo.pt

Professor universitário, e especialista de saúde pública. Transmontano de Montalegre, com uma longa estadia em Moçambique, dirigente associativo da associação académica de Moçambique e da associação dos estudantes da Faculdade de Medicina de Lisboa. Várias publicações, entre as quais sete livros de poesia. Prémio Ricardo Jorge e Arnaldo Sampaio.

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