Do grau zero da “análise”

Do grau zero da “análise”

Estamos assim: Miguel Sousa Tavares (MST), grande especialista em todas as matérias (política nacional, política internacional, economia, finanças, ecologia, futebol…) propôs aos leitores na semana passada um texto em que fala nomeadamente do Alqueva sob o título “A Catalunha e Espanha”!

Para além disso, MST não propõe a mínima informação inédita nem a mais ténue argumentação substancial sobre o tema anunciado pelo título. Antes se limita a alinhar insultos a “intelectuais — alguns do tipo pronto-a-vestir e pronto-a-aderir”, muitos dos quais professores universitários reconhecidos internacionalmente, que assinaram um manifesto «Pela democracia e pelas liberdades na Catalunha» (Público, 23-4-2019). Assim como ao “anterior chefe do Governo espanhol, Mariano Rajoy, do PP, a quem, entre outras debilidades, a inteligência não favorecia particularmente”, que aliás é também tratado de “inepto Rajoy”. Mais, relata umas impressões (dele) sobre a recente campanha eleitoral em Espanha, mas parece não ter reparado que as três direitas (PP, C’s, Vox) propunham como solução para o problema da Catalunha a aplicação indefinida do artigo 155 da Constituição (ou seja, governos da Catalunha nomeados a partir de Madrid) e, também por isso, as direitas foram estrondosamente derrotadas em Espanha, em geral, e na Catalunha, em particular. Não, o problema da Catalunha não é apenas fruto das desinteligências de Rajoy, muito longe disso!

Ou ao “triste personagem chamado Carles Puigdemont” que tem também direito a um “patético Puigdemont, desde então em conveniente exílio”. Não lhe parece importante sequer referir que, desde o bloqueamento de 2010 promovido pelo PP junto do Tribunal Constitucional… a clivagem esquerda-direita na Catalunha ficou subalternizada perante a divisão soberanistas catalães versus nacionalistas castelhanos (juntando assim em várias frentes governativas nacionalistas catalães vários partidos de esquerda, ERC, etc., com partidos de centro-direita, PD&Cat, etc.)… ou que, apesar disso, a ERC (e o PNV) se disponibilizou para apoiar a investidura do Sr. Sanchez para impedir um governo das três direitas em Espanha… ou ainda que a alegação (das direitas, e que MST dá como plausível…) de que o PSOE teria pactuado com os nacionalistas catalães uma eventual via referendária fora do quadro constitucional é puramente falsa! Não, o PSOE já disse que não aceita soluções fora do quadro constitucional, e não aceita referendos de autodeterminação, o PSOE apenas defende o diálogo com os soberanistas catalães e não um 155 indefinido… Apesar disso, as credenciais democráticas dos soberanistas da ERC ficam bem evidenciadas com a disponibilidade para apoiar a investidura do senhor Sanchez! Mas isso escapou a MST, que só vê (algumas) figurinhas da política que atuam qual Deus ex machina… Uma visão muito redutora da história!… Não, o problema da Catalunha não é apenas fruto de algumas eventuais desinteligências do senhor Carles Puigdemont (na visão de MST, pelo menos), muito longe disso!

Ou ao “nosso omnipresente Boaventura Sousa Santos” (muitíssimo menos omnipresente do que Sousa Tavares nos média portugueses, mas bem mais conhecido no estrangeiro). Ou, de certo modo, a “Pedro Sánchez, um inesperado líder do PSOE”. Enquanto, segundo Sousa Tavares, “Pablo Iglesias, foi o mais calmo e o mais vazio de todos. Aliás, o mais dececionante, a começar pela sua postura datada e gasta de esquerdista de café”, quando, consultados por uma folha chamada El País, quatro em oito “politólogos, consultores e professores” consideraram que ele tinha sido o melhor no primeiro debate televisivo entre líderes; e outros oito que tinha sido o melhor no segundo debate (mas “alguns” destes oito deviam ser “do tipo pronto-a-vestir e pronto-a-aderir” na elegante estilística do colunista-comentador todo-o-terreno).

E também não deve ter reparado, por um lado, que defender liberdades e direitos fundamentais, bem como a democracia, é um imperativo cívico em qualquer lado civilizado do mundo, não se trata de «meter a foice em seara alheia»; e, por outro lado, que a situação dos Açores e da Madeira (que MST compara à da Catalunha), num Estado culturalmente homogéneo como é o nosso, não tem rigorosamente nada que ver com a situação da Catalunha (com uma língua própria) num Estado multinacional como é a Espanha!

MST, especialista em tudo, que mete demasiadas vezes “a foice em seara alheia” (a terminologia é dele), deve ter-se esquecido que escreve para um semanário de referência. Esquece, com efeito, que a vacuidade de uma prosa entremeada de insultos não é exatamente o que os leitores esperam como informação e argumentação da parte de um “colunista”…

André Freire & J.-M. Nobre-Correia

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

2 Comments
  • Guilherme de. Carvalho Negráo Valente
    Posted at 13:34h, 10 Maio

    Há dias senti o dever moral de comentar numa carta ao Expresso afirmações infames sobre uma realidade que conheço bem e da qual na verdade ele sabe menos que zero. E a resposta dele… ter-me-ia feito prescindir do de ter enviado a minha carta… E sabe o grande “argumento” que usou? Tratar-me por “senhor Valente”! (Eu tratara-o, , claro, por MST). A minha Mãe referia muitas vezes que o único lugar em que tratavam o meu Pai por “senhor Valente” era nas prisões políticas. O me Pai era advogado e era por Dr., que se tratavam os advogados, mais ainda naquela altura. É preciso dizer mais sobre o sujeito?

    • André Freire
      Posted at 09:51h, 15 Maio

      Só agora vi o seu comentário, caro amigo Guilherme Valente, e por isso desculpe atraso na resposta… o blogue conheceu uma certa hibernação…. mas vamos agora voltar em força com A Vaca Voadora 2.0!… quantos aos colunistas da imprensa, rádio e televisão que falam de tudo e nada e muitas vezes sem saberem do que falam, já para não mencionar o afunilamento ideológico que representa a sua eternização e concentração em diversos órgãos…, diz mais da fragilidade dos órgãos de comunicação social até do que da indigência dos colunistas… afinal, que escolhe os colunistas são as direcções dos jornais, tvs e rádios… um abraço amigo!