Democratizar a Europa

Democratizar a Europa

Um conjunto de cientistas sociais e juristas franceses, entre os quais o celebérrimo Thomas Piketty, assumindo simultaneamente o papel de estudiosos e de intelectuais públicos[i], lançaram recentemente um livro que é uma proposta política para a democratização da Europa, mais precisamente da Zona Euro. Primeiro nas Éditions du Seuil, logo depois na Temas & Debates: Stéphanie Hennette et al (2017), Por um Tratado de Democratização da Europa, Lisboa. O livro está ancorado nos saberes técnicos dos seus criadores, o direito público, a economia, a ciência política e a sociologia, mas é sobretudo uma proposta política de intelectuais franceses empenhados na reforma das instituições europeias. O que me proponho fazer é usar o livro como mote para discutir a necessidade e os contornos de uma eventual (e desejável) reforma democrática (profunda) da Europa, até porque tal como os autores não me revejo nem num refluxo nacionalista, apanágio da direita radical soberanista e eurofóbica, nem numa cristalização da «autocracia pós democrática» (Jürgen Habermas) do statu quo, aparentemente do agrado da tecnocracia que governa a Europa e das forças centristas (Partido Popular Europeu, PPE e boa parte dos Socialistas & Democratas Europeus, PSE/S&D) que com ela amiúde convergem.

Já discuti noutro local as razões e os caminhos para uma democratização da Europa.[ii] Primeiro, há várias instituições políticas ao nível da União Europeia (EU) com fraco ou nulo pedigree democrático. Por exemplo, a Comissão Europeia (CE), o poder executivo da EU, não é eleita pelos cidadãos diretamente, como acontece nos regimes presidenciais, nem é eleita parlamentarmente, como acontece nos regimes parlamentares ou semipresidenciais. A sua muito ténue legitimação democrática advém da sua nomeação pelo Conselho Europeu, onde estão representados os chefes de Estado e de governo dos países da EU, e pela sua aprovação pelo Parlamento Europeu (PE), além da ligação adveniente de a Presidência da CE dever ser atribuída à lista mais votada para o PE (desde o Tratado de Lisboa, 2007). Tudo muito ténue, indireto e remoto, ao estilo dos regimes liberais (mas não democráticos) do século XIX. Segundo, a existência de instituições políticas com forte pedigree democrático, mas com fracos poderes: o PE nem está na base da formação do executivo da EU, como nos regimes parlamentares, nem tem fortes poderes legislativos, como os Parlamentos em regimes presidenciais. Não é por acaso que os eleitores votam tão pouco nas eleições para o PE… Terceiro, a enorme complexidade do sistema político da EU dificulta a responsabilização das suas instituições, seja ela horizontal (isto é, interinstitucional), seja ela vertical (isto é, pelos cidadãos). Quarto, as instituições políticas da EU com pedigree democrático têm amiúde que repartir o poder com instituições tecnocráticas com fraco ou nulo pedigree democrático  (CE, BCE, Direções Gerais, Agências Reguladoras, grandes corporações, etc.). Por exemplo, para a solução do problema do BANIF, o primeiro ministro português, António Costa, teve de despachar com a alta burocracia da Direção Geral da Concorrência… Quinto, a orientação neoliberal das políticas europeias, sobretudo na esfera económica, e uma Europa que em vez de ser um instrumento de regulação da globalização (visão social-democrata) tem sido uma espécie de «cavalo de Troia» da globalização (visão neoliberal), tem levado a um crescente divórcio dos cidadãos face à EU, sobretudo as classes baixas.[iii] Claro que há quem ache que a EU não tem nenhum défice democrático, que isso é um mito, e que não podemos esperar nunca que seja democrática como um Estado porque isso extravasa a sua natureza. Mas aqueles que, como eu e os autores do livro em análise, pensam que é urgente e necessário reformar democraticamente a EU, sabem que um dos obstáculos principais para o fazer são os entraves institucionais: é preciso unanimidade de todos os países para reformar os tratados.

Stéphanie Hennette et al não só reconhecem o problema do défice democrático na Europa como afirmam que o mesmo se agravou significativamente com a crise financeira internacional e a crise das dividas soberanas, e sobretudo com as respostas políticas da EU a esses fenómenos.[iv] Nomeadamente, a chamada «governação da zona euro», de que o Eurogrupo (dos ministros das finanças da zona euro) é uma das instituições chave, agravou significativamente o problema do défice democrático: «nascida sob a égide da informalidade e da opacidade, o Eurogrupo (…), funciona à margem dos tratados europeus, não tendo de prestar contas ao PE, nem, a fortiori, aos Parlamentos nacionais. Pior ainda, as instituições – do BCE à CE, passando pelo Eurogrupo e pelas cimeiras da zona Euro (…) – funcionam segundo variáveis cuja combinação muda com cada política, consoante se fala dos «memorandos» da Troika, das «medidas corretivas» solicitadas aos Estados no âmbito do Semestre Europeu, (…), etc. Formou-se assim, segundo os autores, uma espécie de governação tecnocrática («ângulo morto dos controlos políticos, numa espécie de buraco negro democrático») composta em larga medida pelas altas burocracias europeias e nacionais, e por membros dos executivos da zona euro. Mais: essa «autocracia pós democrática» «leva-nos a sobrestimar as apostas associadas à estabilidade financeira e à ‘confiança dos mercados’, e a subestimar os problemas mais suscetíveis de interessar diretamente o maior número de pessoas, tal como as políticas de emprego, do crescimento, da convergência fiscal, da coesão social e da solidariedade, etc.» Daí a necessidade desta proposta de «Tratado de Democratização da Europa», ou melhor: de democratizar a governação na Zona Euro.

Mas se a chamada «governação da zona euro» veio agravar bastante o défice democrático europeu, a sua aceitação pelo Tribunal de Justiça Europeu, apesar de estar à margem dos tratados, é também a oportunidade encontrada pelos autores para reformar democraticamente a Europa/a Zona Euro sem ter de defrontar-se com os inúmeros pontos de veto exigidos pelos processos de reforma dos tratados. O Capítulo 2 do livro dedica-se todo ele à questão da viabilidade jurídica deste Tratado de Democratização da Governação da Zona Euro, concluindo claramente pela positiva. Registe-se, a este propósito, a presença de especialistas em Direito Público na feitura da proposta, a própria Stéphanie Hennette.

Para democratizar a «governação da zona euro», os autores propõem a criação de uma Assembleia da Zona Euro (AZE) composta por membros dos Parlamentos Nacionais dos países do Euro (Cenário 1: 100 mais 5, para assegurar a presença dos pequenos países; Cenário 2: 320) e do Parlamento Europeu (Cenário 1: 25; Cenário 2: 80). A representação dos países seria proporcional ao seu peso populacional. O Cenário 1 asseguraria maior eficácia da AZE, o Cenário 2 asseguraria maior respeito pelo pluralismo político. A AZE disporia de capacidade de agenda setting na zona euro, ao participar na formação da agenda das cimeiras da zona euro e do Eurogrupo. Disporia ainda de capacidade legislativa para «promover a convergência das políticas económicas e fiscais, como o crescimento duradouro e o emprego»; bem como de instrumentos de controlo das políticas de convergência e de condicionalidade (memorandos, etc.). Em caso de desacordo com o Eurogrupo, a AZE teria a última palavra em matéria de orçamento da zona euro e de taxas e bases tributáveis de IRC na EU. Dado o quadro político democrático atual, permitir ainda colocar em minoria as forças pró-austeridade na zona euro, e em qualquer caso democratizaria a zona Euro.

Que balanço final para esta proposta? Claramente positivo, a vários níveis. Primeiro, estão de parabéns os autores e as editoras por darem à estampa uma proposta tão bem argumentada e defendida, além de extremamente oportuna!  Em segundo lugar, parece-me muito positiva a combinação de saberes técnicos com o empenhamento político de intelectuais públicos. Os autores assumem que a proposta visa colmatar seja o défice do Presidente Hollande neste domínio, seja o défice da própria França. [v] E a França não é e não será nunca um proponente qualquer neste domínio… Terceiro, a proposta demonstra claramente que é possível democratizar a Europa sem cair no armadilha do imobilismo institucional ditada pela dificuldade da reforma dos tratados. Do lado menos positivo, temos, por um lado, a reforma democrática da EU à margem dos tratados, tal como faz a atual governação da zona euro. Claro que isto resulta claramente dos problemas institucionais da EU, não dos autores, mas é um problema… Por outro lado, a composição da AZE baseada estritamente nas dimensões populacionais dos países, claramente à revelia das soluções de tipo federal, as quais favorecem as minorias (vide o próprio PE). Finalmente, esta reforma não é uma reforma geral democrática das instituições europeias, apenas da governação económica da zona euro. Seja como for, o debate está lançado, e iniciado. E bem!

Publicado originalmente na minha coluna mensal «Heterodoxias Políticas», Jornal de Letras, edição de 2-15 de agosto de 2017.

[i] Sobre o conceito e o perfil de intelectual público, ver o recente livro de Rui Bebiano (2017), Tony Judt – Historiador e Intelectual Público, Lisboa, Edições 70.

[ii] Ver Freire, André (organizador) (2015), O Futuro da Representação Política Democrática, Lisboa, Nova Vega, especialmente capítulos 1, 6 e 7, e Rodriguez-Aguillera de Prat, Cesáreo (2016), The European Democratic Deficit.The response of the Parties in the 2014 elections, Bruxelles, P.I.E. Peter Lang, nomeadamente as «n» referências inclusas.

[iii] Ver Freire, André, et al (2017), «Workers’ EU Political Alignments during the Great Recession», Transfer: European Review of Labour and Research, 1st Online 24-5-2017.

[iv] Ver Ver Stéphanie Hennette et al, op. cit., pp. 9-19 e 51-57.

[v] Ver Stéphanie Hennette et al, op. cit., pp. 12 e 47-49.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

1 Comment
  • Alexandra Nunes
    Posted at 14:31h, 14 Agosto

    Um ENORME BEM HAJA daqui PROFESSOR DOUTOR André Freire! Daqui, eventualmente, só mais um elemento ab integro desta nossa grande Nação que, se recusa a desistir dela! E este elemento, que não precisa ter nome, raça, sexo ou credo mas, é igualmente um ser pensante e com voz, a quem os seus amigos lhe perguntam em quem vai votar, responde-lhes sempre o mesmo. Pensem por vós, pela vossa própria cabeça mas depois de equacionarem as vossas necessidades, façam-se Ouvir. Ao postar este artigo de opinião no FB, está a “democratizar o acesso à informação”. Eu não tenho recursos para pagar assinaturas de jornais, nem poder de aquisição dos livros que quero e preciso ler mas, busco, busco incessantemente informação isenta, de fontes rigorosas que, considere pertinente e útil. É um Imperativo torná-la acessível às massas, ao povo…a nós, a mim, “a cada árvore”. Já alguém, Prof. Mário Gomes, lançou uma Petição Pública, para discussão na AR, visando simplesmente isto. É Só a garantia efectiva de um Direito consagrado constitucionalmente., certo? É muito importante que estes trabalhos, estas obras, sejam bem divulgadas. Creio poder ser a grande via do combate ao enorme absentismo. Por favor, corrija-me caso esteja errada. Obrigada