Da Grande Recessão e do Grande Retrocesso

Da Grande Recessão e do Grande Retrocesso

  1. Do grande retrocesso e da grande recessão

 

Aquilo de que trata o livro O Grande Retrocesso (Geiselberger, 2017), organizado por Heinrich Geiselberger mas que conta com mais catorze autores (entre eles, embora apenas na edição portuguesa, o português António Costa Pinto), é de algo mais vasto do que apenas a Grande Recessão. Ou seja, em 2007-2008, com o colapso de bancos e seguradoras nos EUA, uma forte crise financeira internacional (e com fortíssimas consequências sociais, económicas e políticas) abateu-se sobre o sistema capitalista, de tal envergadura que o então responsável do banco central norte-americano não hesitou em classificá-la como a maior desde a segunda guerra mundial. E os cientistas sociais e políticos cunharam mesmo o termo «(a) Grande Recessão» para a classificar (ver Freire et al, 2016). Esta última é descrita, aliás, nomeadamente por Wolfgang Streeck (neste livro de 2017, em análise, e num outro anterior de 2013, citado nas referências bibliográficas da presente peça), antes como mais uma «etapa» da crise do capitalismo neoliberal, financeirizado e desregulado, que tutela as socieades Ocidentais (e não só) desde os anos 1970-1980. Ou seja, digamos que a «Grande Recessão» é descrita como mais uma «etapa» (não necessariamente num sentido linear) do Grande Retrocesso.

Trata-se, em O Grande Retrocesso, de uma reflexão sobre fenómenos políticos e sociais preocupantes que têm ocorrido pelo menos desde a década de 1980-1990 nas sociedades modernas, nomeadamente Ocidentais, e que poderão ser descritos como os traços e os efeitos sociais e políticos da ascenção do neoliberalismo e da globalização neoliberal, bem como das respostas políticas que geraram, em muitos casos preocupantes. Nomeadamente, o Grande Retrocesso caracteriza-se pelos ataques à democracia, acima de tudo na sua versão demoliberal (ou seja, na linha do liberalismo político), e portanto tem-se traduzido em ataques à separação de poderes, ao Estado de Direito, aos direitos das minorias, e amiúde numa viragem nacionalista, securitária e xenófoba, ligada sobretudo ao populismo (não raro autoritário) de direita. Um dos autores do livro, Arjun Appadurai, dá exemplos desta vaga nacional-populista, amiúde com traços autoritários (mais ou menos pronunciados consoante os países), nos casos da Rússia, de Putin, da Turquia, de Erdogan, na India, de Narendra Modi, ou nos EUA, de Trump. E, na Europa, além dos casos mais conhecidos da Hungria, de Victor Órban, e da Polónia, de Andrzej Duda, também o forte ascenço político-eleitoral da direita radical, nacionalista e populista, em muitos países (França, Holanda, Áustria, Grécia, etc.), é descrito como parte central do Grande Retrocesso.

O livro tem uma vertente simultaneamente de diagnóstico e outra mais prescritiva, ou seja, pretende também apresentar algumas linhas orientadores para uma resposta social e política ao Grande Retrocesso. De algumas das respostas tratarei na seção seguinte, concentrando-me nesta nalgumas linhas de força dos diagnósticos sobre os traços e as causas do Grande Retrocesso. Naturalmente, dado o extenso número de contribuições, e as perspetivas algo diversas, concentro-me apenas nalgumas análises que me parecem mais relevantes e emblemáticas.

O autor Paul Mason, jornalista e publicista inglês, faz uma análise das causas do Grande Retrocesso centrada no ascenso do neoliberalismo. Embora centrada no caso inglês, esta análise pode facilmente ser extrapolada para outros casos, não fosse o Reino Unido, de Tatcher, junto com os EUA, de Reagan, os dois primeiros experimentos democráticos do neoliberalismo. Segundo Mason, as políticas neoliberais erodiram a coesão social, redundaram num forte aumento das desigualdades e também num certo abandono das classes baixas, designadamente dos operários, à sua sorte, nomeadamente por aquelas forças políticas (os sociais-democratas) que mais as deviam defender: «se a vida para a classe trabalhadora pareceu melhor nos anos 1990 do que nos anos 1980 é porque tanto o crédito como os bens de consumo baratos vindos da China compensaram o principal problema: a estagnação salarial. A globalização e a desregulamentção financeira eram essencialmente positivas para a classe trabalhadora – era essa a mensagem veiculada pela social-democracia (p. 153).» Ou seja, a social-democracia convergiu com a doxa neoliberal dominante cavalgando a globalização e aceitando o boom do crédito como forma de compensar a redução real dos salários. Todavia, como bem  explicou Wolfgang Streeck (no livro de 2013, e no livro em análise) essa foi apenas uma forma de ganhar tempo («tempo comprado») pois a crise financeira internacional de 2008 veio revelar a fragilidade da solução em todo o seu esplendor.

No livro em análise, Mason destaca os efeitos nefastos de certas políticas neoliberais (a deslocalização das empresas como forma de baixar salários; a fragmentação das empresas com vista à máxima rentabilização financeira de cada componente; a redução da progressividade nos impostos; as privatizações; a financeirização das economias e do consumo) não apenas em termos socioeconómicos mas também em termos morais, minando a coesão social e criando um ambiente de «salve-se quem puder»… De novo, o abandono das classes baixas: «na verdade, o Estado não está aqui para vos ajudar, mas sim para tornar todos os serviços públicos o mais dispendiosos e escassos possível (p. 155).» Este tema do abandono das classes baixas pela esquerda (social-)democrata é bastante glosada no livro, nomeadamente por Nancy Fraser para explicar o triunfo de Trump  (a escolha seria apenas entre um «neoliberalismo progressista», muito interessado nos direitos das minorais mas pouco interessado no combate às desigualdades socioeconómicas e em defender a classe trabalhadora, e um «populismo reacioonário), e por Donatella della Porta, para explicar as significativas diferenças entre o populismo de esquerda e o populismo de direita. A desproteção das classes baixas criou o «caldo moral» da falta de coesão social. Com a crise e o crescimento da imigração, mais a resposta da direita populista a ela (à erosão da soberania económica responde com o reforço da soberania cultural), estavam criadas as condições para fazer dos imigrantes o «bode expiatório» de tudo o que corre mal, e para uma adesão de uma parte significativa da classe operária ao populismo de direita.

 

  1. Principais virtudes e limitações da edição portuguesa de «O Grande Retrocesso»

 

Entre as principais virtudes do livro estão, por um lado, a enorme pertinência e oportunidade dos temas tratados, e, por outro lado, o leque de autores, sejam eles oriundos da academia, sejam eles oriundos do jornalismo, ou de outras áreas. Além disso, o livro não se ocupa apenas de diagnósticos, pretende também fornecer orientações para a ação: «como reação a uma Internacional de Nacionalistas, tentámos formar um grupo de discussão transnacional: no nível das colaboradoras e dos colaboradores, no nível dos fenómenos estudados e da distribuição: este volume será publicado em simultâneo em vários países (p. 14).» Em matéria de pistas para a ação, destacaria as posições de Mason, de Zizek ou Nancy Fraser, para um combate à globalização neoliberal, para um corte da social-democracia com a doxa neoliberal com vista, nomeadamente, a dar a devida atenção aos interesses das classes baixas (Nancy Fraser e Mason), para uma nova política de alianças e para uma certa reabilitação do populismo de esquerda (Zizek e Donatella della Porta). Estamos perante um livro de enorme relevância e qualidade. A faltar fica, por um lado, um contraponto vindo da direita (nacionalista) e, por outro, um trabalho editorial mais apurado (da Objetiva) capaz de dar as referências em língua inglesa, francesa ou castelhana dos livros citados, já que esta edição do livro se colou à versão alemã e, por isso, é como se as obras citadas tivessem sido publicadas apenas em alemão…

 

André Freire

Publicado originalmente na coluna «Heterodoxias Políticas» do Jornal de Letras, 21-12-2017 (quinzena)

 

Referências bibliográficas

Freire, André, et al (organizadores), (2016), Participação e Representação Políticas na Europa em Crise, Lisboa, Assembleia da República, Coleção Parlamento.

Geiselberger, Heinrich (2017), O Grande Retrocesso. Um debate internacional sobre as grandes questões do nosso tempo, Lisboa, Objectiva.

Streeck, Wolfgang (2013), Tempo Comprado. A Crise Adiada do Capitalismo Democrático, Coimbra, Actual.

 

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André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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