Cumprir as promessas eleitorais, um esteio central da democracia

Cumprir as promessas eleitorais, um esteio central da democracia

As grandes revoluções liberais do século XVIII trouxeram importantes inovações na arte de governar: direitos fundamentais; separação de poderes; Estado de direito; parlamentarização dos regimes políticos. Estas características foram em regra fixadas em Constituições, amiúde elaboradas por Assembleias Constituintes eleitas para o efeito (caso da Portuguesa: CRP 1976). Subjacente a estas inovações, além do objetivo de erradicação da tirania (via separação de poderes) e da arbitrariedade do poder (via cartas dos direitos), há um princípio fundamental: a governação com base no consentimento. E as eleições “livres, justas e frequentes” são o mecanismo fundamental para a assegurar. Num regime representativo são os representantes eleitos que governam, tendo em conta as escolhas fundamentais do soberano: os partidos propõem aos eleitores determinados pacotes de políticas e estes escolhem tendo em conta essas propostas, as quais funcionam como balizas da governação. No terminus do mandato os eleitores julgarão se o governo governou, ou não, de acordo com “as preferências populares”.

Por um lado, «if on election day voters cannot choose among candidates with different policy proposals but only, say, among candidates with different policy backgrounds, rhetorical styles, or aesthetic qualities, elections migrate out of the political realm and became non-political shows (…)» (Schedler, 1998, p. 195); e, por outro lado, «if after election day government officials do whatever they want, regardless of any prior campaign commitments, they ridicule the very notion of democracy as well» (Schedler, 1998, p. 195).

Claro que a quebra de promessas eleitorais é por vezes justificável, nomeadamente devido à alteração fundamental (e não expetável na hora da eleição) de circunstâncias (sociais e políticas), à existência de novas informações que mudam radicalmente a situação que justificava as promessas ou ainda à alteração das preferências dos próprios eleitores nesse domínio (para uma análise exaustiva de tais circunstâncias excecionais, ver Schedler, 1998, pp. 202-207). Mas, nestes casos, por um lado, para serem alterações credíveis elas não podem estar associadas a um incumprimento assimétrico das promessas; por outro lado, os eleitores serão os juízes últimos da justeza e justificação do incumprimento. Ora o que se passou no mandato do governo anterior, 2011-2015, foi precisamente uma violação sistemática, profunda e assimétrica (nomeadamente penalizando mais os assalariados e os pensionistas e poupando os grandes interesses económicos) dos compromissos eleitorais (e do programa original da Troika, que enquadrou as escolhas dos eleitores portugueses em 2011) assumidos pela direita (PSD e CDS-PP) em 2011.

É por tudo isso que a notícia de que Costa está a cumprir os acordos com os seus parceiros à esquerda é uma boa notícia não apenas para a saúde da aliança de esquerdas, é também uma excelente notícia para a democracia portuguesa. Ao contrario do governo e da maioria anterior, que com o sistemático, profundo e assimétrico incumprimento dos compromissos eleitorais, tinha erodido muitíssimo o apoio e a confiança dos portugueses na democracia, o XXI governo constitucional está a cumprir escrupulosamente os compromissos assumidos por cada um dos partidos da aliança com os seus eleitores, pelo menos aqueles que foram sintetizados no acordo político entre os quatro partidos. E isso é bom não apenas para o governo de esquerdas, é muito bom também para a democracia!

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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