As Eleições Europeias de 2019 e a reforma política do PE

As Eleições Europeias de 2019 e a reforma política do PE

As eleições relativamente menos importantes para o funcionamento dos sistemas políticos (nacionais), nomeadamente aquelas em que o poder executivo não está em jogo, são geralmente consideradas pelos cientistas políticos como «eleições de segunda ordem». Estão neste grupo as eleições europeias, em primeiro lugar e acima de tudo, mas também as eleições municipais e regionais, embora em graus variáveis e por motivos diversos. No presente texto pretende-se precisamente refletir sobre os resultados das eleições europeias de 2019, em Portugal e na Europa. Passemos, pois, à análise dos resultados e consequências das eleições europeias, em Portugal e na Europa.

As europeias de 2019, em Portugal, confirmam que, quando o governo é relativamente popular (como é o caso do PS em Portugal ou do PSOE em Espanha), o principal partido que o apoia pode não ser penalizado e ganhar mesmo as eleições: com 33,4% dos votos e nove eurodeputados os socialistas foram claramente o partido vencedor das europeias de 2019 em Portugal. Todavia, a votação do PS não esteve muito acima da vitória por «poucochinho» de António José Seguro em 2014, 31,5% dos votos e 8 lugares. É certo que a distância face ao seu principal competidor, o PSD, foi grande: 21,94% e 6 eleitos, e isso faz muita diferença. Mas a comparação correta entre as eleições europeias de 2019 e as de 2014, no que à competição entre o PS e a direita diz respeito, é entre o PS e a coligação entre o PSD e o CDS-PP, «Aliança Portugal», que na altura tiveram 27,71% dos votos e 7 eurodeputados. Ou seja, se somarmos os votos das direitas em 2019, 28,1% e 7 eurodeputados, vemos que ela é um pouco melhor do que a obtida em 2014 e que a distância face ao PS (5,3) é apenas um pouco maior do que aquela que se verificou em 2014 (3,79%). Ou seja, do ponto vista estrito dos números verificamos que a vitória do PS sobre as direitas foi apenas um pouco maior em 2019 do que em 2014, e se as listas (PSD e CDS-PP) tivessem ido juntas, como foram em 2014, muito provavelmente teriam agora 8 eurodeputados em vez de 7.  Portanto, Costa, tal como Seguro, também «ganhou por poucochinho» às direitas (unidas em 2014, desunidas em 2019), o problema é que os significados políticos atribuídos às vitórias foram diferentes. Há, ainda, uma outra diferença crucial: é que as direitas estavam no poder, em 2014, e o seu governo era bastante impopular (na reta final de uma intervenção externa, muito pouco querida pela população), e, portanto, em 2014 tudo favorecia a vitória socialista; o mesmo não se pode dizer de 2019.

O Bloco de Esquerda, com 9,8% dos votos e dois eurodeputados, recuperando parcialmente os bons resultados de 2009 (3 eurodeputados), e o PAN – Partido das Pessoas, Animais e Natureza, 5,1% e um eurodeputado, são os outros dois grandes vencedores desta contenda eleitoral. Agora, tal como nas autárquicas de 2017, o BE parece estar a ser premiado pelo seu maior pragmatismo e moderação política, seja apoiando a solução governativa em funções, seja no tipo de crítica à construção europeia (um europeísmo crítico, mas muito longe da eurofobia), e também pelo perfil da cabeça de lista (Marisa Matias). Quanto ao PAN, desde que em 2015 André Silva foi eleito para a AR e tem aí feito um trabalho consistente e bastante diferenciado face à restante oferta partidária existente (a defesa dos direitos das pessoas, dos animais e do ambiente), veio provar a sua mais valia, o seu valor acrescentado (perdoem-me o jargão económico), no sistema partidário português. E, assim, Portugal terá pela primeira vez um partido membro dos Verdes no PE, o PAN. E esta é uma vitória tanto mais importante quanto os mass media deram ao PAN, nesta campanha, muito menos visibilidade do que, por exemplo, deram à Aliança ou ao Basta.

No capítulo dos outros perdedores (além do PSD e do CDS-PP), a derrota mais justa é talvez a de Marinho e Pinto. Eleito em 2014 pelo MPT (mais outro membro deste partido), este senhor revelou uma performance medíocre no PE (praticamente nem se deu por ele…), além de uma sobranceria política pouco conforme com uma democracia digna desse nome (nomeadamente dizendo que o vencimento do PE não lhe dava para cobrir as suas despesas, mas permanecendo lá…). Em 2019, Marinho e Pinto concorreu pelo seu PDR (Partido Democrático Republicano) mas os eleitores devolveram-lhe um cartão vermelho: não só não foi eleito como teve um resultado miserável (0,48%), entre os quatro piores em 17 partidos.  No caso do PCP/CDU, a eleição de apenas 2 eurodeputados (tinha 3 em 2014) per se não seria um grande problema, pois já tinha acontecido outras vezes no passado, mas a percentagem de votos, 6,7%, evidencia uma menor capacidade de mobilização dos comunistas num contexto que geralmente lhes é mais favorável. A falta de renovação e ortodoxia do cabeça de lista (nomeadamente no tipo de discurso face à Europa) poderão, eventualmente, ser fatores explicativos. Já os efeitos da participação na maioria de governo parecem-me mais problemáticos pois o eleitorado dos comunistas é geralmente mais fiel do que o dos bloquistas e estes têm-se saído bem como suporte da maioria política. Um assunto a aprofundar. Mais, dado o contexto de eleições de segunda ordem das consultas europeias, seja pela sua muito fraca participação eleitoral, seja por não terem consequências para a formação do poder executivo nacional, não creio que seja possível extrapolar todos estes resultados para as legislativas portuguesas de outubro próximo. Tudo em aberto até outubro, portanto.

Há vários elementos que caracterizam a fraca democraticidade do sistema político

Europeu, nomeadamente: o forte poder de instituições não eleitas (BCE, agências de regulação e direções gerais, etc.) ou com ténue pedigree democrático (a Comissão Europeia, por exemplo); os fracos poderes de instituições eleitas (como o PE); a fraca conexão entre as eleições para o PE e a formação do poder executivo da UE; a ausência de uma divisão clara entre governo e oposição, bem como uma fraca diferenciação ideológica entre as duas maiores famílias políticas (socialistas e democratas: S & D; conservadores: PPE), fruto da política da «grande coligação» entre os S &D e o PPE que vigora na UE praticamente desde sempre; a constante partilha do poder entre estas duas famílias políticas tem implicado também uma falta de alternância política.

As mudanças institucionais e políticas na fraca conexão entre as eleições para o PE e a formação do poder executivo da UE têm ocorrido desde o Tratado de Lisboa, e fizeram-se sentir logo nas europeias de 2014: só podem ascender à presidência da Comissão Europeia os cabeças de lista das listas partidárias concorrentes ao PE (os chamados Spitzenkandidaten). A conexão é ainda ténue porque quem nomeia os candidatos a aprovar pelo PE, após as europeias, é o Conselho Europeu (o órgão que reúne os chefes de Estado e de governo dos Estados da UE), mas este foi um claro avanço institucional. Todavia, permanecia a política da grande coligação com uma partilha de poder entre os socialistas e os conservadores. Porém, dado, por um lado, o refluxo das duas grandes famílias políticas no PE, em 2019, que perdem pela primeira vez a maioria absoluta conjunta, fica em aberto a geometria política para uma nova maioria e para a escolha do presidente da comissão, que pode não ser do PPE, apesar de este ser o partido mais votado para o PE. Por outro lado, dado o forte crescimento dos liberais (ALDE), nomeadamente devido à incorporação da lista Renascença de Macron, e dos Verdes (Verdes/ALE), que têm maioria absoluta no PE se juntarem forças aos S&D, está em cima da mesa a possibilidade de uma nova maioria política progressista e pró-europeia (S&D, ALDE e ALE) no PE, com um presidente da comissão oriundo de uma destas três famílias políticas. O fim da política da grande coligação e uma nova maioria progressista e pró-europeia na Europa seriam duas excelentes notícias para os cidadãos da UE porque a falta de diferenciação entre governo e oposição, entre esquerda e direita, são o melhor alimento para os populistas da direita eurofóbica (ENL – «Europa das Nações e da Liberdade»; EFDD – «Europa das Liberdades e da Democracia Direta») – «eles são todos iguais», ouve-se amiúde no discurso populista, e é de algum modo verdade quando vigora a «política do cartel» -, os quais apesar de tudo não cresceram tanto em 2019 como se esperava. E teremos finalmente alternância, a verificar-se tal mudança. Uma nota final para aqueles que gostariam de ver uma maioria de esquerdas (S&D, ALE e GUE/NGL) a governar a EU, tal como acontece em Portugal, esclareça-se, primeiro, que tal não é aritmeticamente possível e, segundo, que a esquerda radical (GUE/NGL) entrou em refluxo em 2019.

 

Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna «heterodoxias políticas» (artigo extra a pedido do director), primeira quinzena de Junho de 2019.

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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