Anomalias e incertezas

Anomalias e incertezas

Política : A campanha para as eleições presidenciais marcará data na história de França. Até porque nada se passou na relativa quietude habitual. E porque as consequências são demasiado imprevisíveis…

Decididamente, a campanha para as eleições presidenciais em França terá sido do início ao fim marcada por toda uma série de anomalias. O que a transformou num oceano de incertezas não só sobre os destinos da França como também da União Europeia. Para além de anunciar muito provavelmente uma nova cartografia da paisagem político-partidária francesa que não deixará de ter repercussões no resto da Europa [1]

A primeira anomalia constituiu uma surpresa em três planos. Emmanuel Macron, ministro da Economia sem etiqueta política, funda um movimento político (em abril de 2016) cinco meses antes de se demitir das suas funções ministeriais. Demitiu-se depois (em agosto), oito meses apenas antes do fim do mandato presidencial de François Hollande, dando assim a impressão de abandonar o navio quando estava a meter seriamente água. Declarou-se depois candidato à presidência da República (em novembro), obtendo rapidamente sondagens extremamente favoráveis, tanto mais surpreendentes que não tinha atrás de si uma das tradicionais forças partidárias.

As surpresas abusivas das primárias

Outra anomalia importante foi o facto de terem saído das “primárias” dos ecologistas (em outubro-novembro), da “direita e centro” (em novembro) e da “esquerda” (em janeiro de 2017) três eleitos inesperados. Três eleitos que os média como as sondagens tinham durante longas semanas considerado com fracas probabilidades. O que fará muito provavelmente que os grandes partidos (ou as organizações que lhes sucederem) deixarão no futuro de organizar tal tipo de contenda, geradora de incerteza e fragilidade por demais evidentes.

Situação inédita a de um presidente em exercício, François Hollande, que decide não voltar a apresentar-se às eleições presidenciais. Consequência de sondagens assombrosamente negativas. Mas decisão tomada demasiado tarde, o que complicará seriamente a organização de “eleições primárias” pelo Parti Socialiste, assim como, em seguida, a campanha do eleito nestas “primárias”.

Enquanto os outros candidatos ditos “principais” tinham começado as suas campanhas meses atrás, o candidato do PS, Benoît Hamon, meteu-se em negociações anormalmente demoradas com o candidato ecologista …eleitoralmente pouco significativo. Errou igualmente fazendo apelos sucessivos para que, no fundo, o candidato da esquerda radical, Jean-Luc Mélenchon, desistisse em seu favor, quando este se encontrava em posição desfavorável nas sondagens. Só que Mélenchon fez uma campanha muito mais carismática e mobilizadora do que Hamon, começando por ultrapassar este nas sondagens e desterrando-o finalmente para uma posição extremamente inconfortável de quinto classificado… Situação tanto mais inconfortável que diversas personalidades do PS traíram os compromissos tomados e mesmo devidamente subscritos : foi o caso de antigos concorrentes nas primárias, como o ecologista François de Rugy e o antigo primeiro ministro Manuel Valls que se declararam apoiantes do centrista Macron !

Numa lógica elementar de esquerda, Hamon deveria finalmente retirar-se em favor de Mélenchon. Tanto mais que isso significaria que boa parte dos seus eleitores se repartiriam entre, à sua direita, Macron, e, à sua esquerda, Mélenchon, reforçando deste modo o campo dos que se opõem a François Fillon, da direita conservadora, e a Marine Le Pen, da extrema direita. Mas esta lógica política opõe-se à lógica partidária. Porque retirar a candidatura significaria entregar o futuro do PS à direita do partido. Mas significaria também que o PS perderia o reembolso previsto pela lei de 47,5 % das despesas da campanha (o que corresponderá certamente a alguns, para não dizer muitos milhões de euros), caso Hamon obtenha mais de 5 % dos votos.

A imprensa e a Justiça na contenda

Entretanto, no meio de todas estas anomalias e incertezas, vieram a imprensa e a Justiça a acusar Fillon e Le Pen de, nomeadamente, desvios de bens públicos e abuso de bens sociais em proveito pessoal e familiar, no primeiro caso, em proveito pessoal e do partido, no segundo. O que abalou a posição favorável de Fillon nas sondagens, posição que veio depois a reconquistar parcialmente. Mas o que não provocou grandes mudanças no que diz respeito a Le Pen, a sua base eleitoral dando pouca importância às questões de ética e de exemplaridade…

A França encontra-se assim, pela primeira vez na história da V.a República, numa situação de total incerteza no que diz respeito aos resultados da primeira volta da eleição este domingo. E até mesmo em relação à segunda volta da eleição em 7 de maio. Tanto mais que, em fim de campanha, é descoberta a preparação de um atentado terrorista em Marselha. E que ontem um atentado terrorista teve significativa e simbolicamente lugar nos Campos Elísios (Champs Elysées), em Paris, suscitando um clima de insegurança e dramatização que terá muito provavelmente consequência sobre o voto.

Ora, o sentimento de insegurança leva geralmente os eleitores a votarem em favor dos adeptos de posições autoritárias, pouco ou nada respeitadoras do pluralismo e da legalidade. E nisto, os dois candidatos da direita conservadora e da extrema direita poderão bem ser os beneficiários. Até porque os terroristas, e nomeadamente os terroristas islâmicos, procuram à viva força desde há muito anos que a Europa, e muito particularmente a França, renuncie progressiva e notoriamente ao que a leva a aparecer aos olhos do mundo como uma terra de liberdade e de democracia…

[1] Ver a este propósito J.-M. Nobre-Correia, « A nova revolução francesa ? », in Notas de Circunstância 2, 12 de março de 2017.

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J.-M. Nobre-Correia
JM.NobreCorreia@gmail.com

Professor emérito da Université libre de Bruxelles, foi nomeadamente titular das cadeiras de Teoria da Informação Jornalística, de História dos Média na Europa e de Socioeconomia dos Média na Europa (1970-2011). Paralelamente, foi professor convidado na Université Paris II (1996-2006), professor visitante na Universidade de Coimbra (1996-2001) e membro do conselho científico do Europäisches Medieninstitut de Düsseldorf (1995-2004).

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