A deriva autoritária no Brasil

A deriva autoritária no Brasil

  1. Vencedores e perdedores dos vários pleitos eleitorais

 

Nas eleições presidenciais brasileiras ganhou Jair Bolsonaro, do Partido Social Liberal – PSL (que agora elegeu 52 deputados, sendo o segundo maior – após o PT, 57 – com 10,1% dos lugares, enquanto em 2010 e de 2014 elegeu apenas um, 0,2%), com cerca de 55% dos votos (à volta de 57 milhões). Com cerca de 44% e 10 milhões de votos menos, ficou o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad. Se é impressionante o resultado de Bolsonaro, nomeadamente devido ao que disse e fez na campanha, e à sua proveniência partidária ultraminoritária, é também notável o resultado de Haddad na segunda volta, tendo em conta a escassez dos apoios partidários dos partidos do centro, do centro-esquerda e do centro-direita. Por exemplo, no centro e no centro-direita, no PMDB e no PSDB (neste o novo governador de São Paulo, João Doria), muitos altos dirigentes declararam apoio a Bolsonaro, mesmo quando os seus partidos se declararam neutros.

Pelo contrário, no centro-esquerda, alguns candidatos (como Ciro Gomes, do PDT) não declaram apoio a Haddad, apesar de se demarcarem de Bolsonaro e do seu partido ter apoiado o candidato do PT. No campo democrata, foi especialmente impressionante, pela negativa, a demarcação de Fernando Henrique Cardoso (FHC) face a Bolsonaro mas sem dar indicação de voto em Haddad – revejam-se, por contraponto, as eleições presidenciais francesas de 2002 quando as esquerdas e o centro se uniram em torno de Chirac para barrar Jean Marie Le Pen no 2º turno.

Se a vitória de Bolsonaro e os resultados do PSL são extraordinários, e Haddad resistiu bem no segundo turno, é importante percebermos quem são os grandes perdedores e vencedores nestas eleições. Com a ajuda do doutorando em Ciência Política do ISCTE-IUL, e prof. na Universidade Federal de Alagoas no Brasil, Leonardo Leal, organizámos os resultados dos partidos (e dos candidatos, no caso das presidenciais) nas eleições para a Câmara dos Deputados (e o Senado) em grandes tendências políticas: esquerda, centro-esquerda, centro, centro-direita e direita.

Nas presidenciais, o grande perdedor é o PSBD, pois não passou ao 2º turno, onde sempre esteve, após FHC ter sido eleito Presidente em 1994 e 1998. Outro grande perdedor é o PMDB/MDB pois teve quase sempre, desde 1994, um vice-presidente entre os candidatos de maior relevo (incluindo o atual Presidente, Michel Temer), e agora parece ter-se eclipsado, o seu candidato teve 1%. Nas legislativas, e considerando apenas os grandes partidos, nota-se que o refluxo eleitoral (desde as eleições de 2014) do PT de 69 (13,5%) para 57 (11,1%) deputados, é bastante menor do que o do PSDB, de 54 (10,5%) para 30 (5,8%), e do PMDB, de 66 (12,9%) para 34 (6,6%). Ou seja, nas legislativas, os dois grandes partidos do centro, centro-direita, sofreram um refluxo muito maior do que o grande partido do centro-esquerda.

Vejamos agora como ficou a Câmara dos Deputados, por grandes tendências ideológicas, e como isso compara com as legislaturas anteriores. Tal é muito importante porque num regime presidencial como é o brasileiro, ou seja, com separação rígida de poderes entre o executivo (presidente/governo) e o legislativo (Câmara dos Deputados e Senado), eleito por representação proporcional e com elevadíssima fragmentação partidária (cerca de 30 partidos representados na Câmara), é importante perceber a distribuição de cadeiras por tendências para avaliar as eventuais políticas de alianças possíveis.

Primeiro, a direita, que na Europa poderíamos chamar radical, teve um resultado notável: entre 1990 e 2014 tinha variado entre um máximo de 19,2%, em 1994, e um mínimo de 8,19%, em 2014, foi agora catapultada para 20,08%, um máximo histórico. O centro-direita, com 31,9%, manteve-se na casa dos 30%-33% em que sempre esteve (exceto em 1998: 40,16%). Já o centro, com 20,27%, teve um mínimo histórico pois, sobretudo nas últimas legislaturas, tinha-se situado sempre em volta dos 25%-30% (30,41% em 2014). Trata-se, pois da área com maior refluxo no espetro ideológico brasileiro, e provavelmente aquela que mais alimentou o crescimento da direita.

Estas três áreas têm uma larga maioria na Câmara (e também no Senado), capaz até de emendas constitucionais, e se é verdade que muitos dos seus líderes partidários se demarcaram da direita (radical), como foi o caso com FHC, também é certo que muitos (por vezes dentro do mesmo partido: vide o PSDB) não só não o fizeram como apoiaram explicitamente Bolsonaro. Portanto, pode estar aqui a chave do seu sucesso, ou insucesso, num eventual “presidencialismo de coligação”, se o novel presidente quiser seguir a via tradicional na democracia brasileira contemporânea (ver Rogério Bastos Arantes, “Três cenários para Bolsonaro”, 2018).

A esquerda (radical), com um máximo histórico de 3,90% lugares no Congresso (tirando a eleição de 1998: 4,29%), e o centro-esquerda (onde incluímos o PT), com 24,56%, estão em clara minoria, como aliás sempre estiveram, apesar do período áureo para o centro-esquerda, entre 2000 e 2010, com uma força parlamentar na ordem dos 30%. Portanto, seja agora, numa eventual liderança da resistência democrática da oposição (tendo o PT como pivô), seja no passado, para governar, a esquerda e, sobretudo, o centro-esquerda sempre precisou/precisaram de coligações com o centro e/ou com o centro-direita para fazerem alianças maioritárias. Mais, nestas condições é óbvio que uma solução como a portuguesa, da maioria de esquerdas (radicais e do centro), não foi nunca possível no sistema político brasileiro.

 

  1. A deriva autoritária e neoliberal de Bolsonaro

 

A plataforma de Bolsonaro, tal como as atitudes e orientações do candidato, são em geral descritas como iliberais. Todavia, tal classificação está em parte equivocada. É verdade que o candidato fez declarações explícitas a elogiar a ditadura militar e até alguns dos seus ilustres torturadores (como o coronel Carlos Brilhante Ustra), dizendo que a ditadura teve bons resultados, o seu maior problema foi não ter morto muito mais gente, etc. Também fez declarações contra os direitos da oposição e das minorias, ameaçando liquidar ou extraditar os “vermelhos petralhistas” (um jogo de palavras com o PT e os Irmãos Petralha), declarando guerra aos homossexuais e lésbicas, fazendo declarações depreciativas das mulheres e dos afro-americanos brasileiros, ameaçando pôr em causas as terras dos índios, etc. E, finalmente, tal como Trump nos EUA, propõe-se (apenas) mais “lei e ordem”, ou seja, mais repressão e liberalização do uso de porte-de-arma como formas (quase exclusivas) de combater a criminalidade. Portanto, do ponto de vista do liberalismo político, as orientações do novel presidente do Brasil são claramente anti-democráticas e anti-liberais.

Todavia, do ponto de vista do liberalismo económico, a plataforma de Bolsonaro, tal como a de Trump nos EUA, é neoliberal: comprimir os direitos dos trabalhadores e os impostos das empresas para estimular a economia, privatizar massivamente as grandes empresas públicas e a segurança social (além de outros serviços públicos) para equilibrar as contas públicas e dinamizar o crescimento económico.  Claro que há alguma heterogeneidade na coligação dominante nesta área, entre o neoliberalismo radical do novo super-ministro da Fazenda e da Economia, Paulo Guedes, e o suposto nacionalismo económico de alguns militares, mas a nota dominante está dada: uma mistura de autoritarismo, iliberal do ponto de vista político, com liberalismo económico radical.

A linha de rumo que Bolsonaro irá seguir dependerá muito das alianças que quiser e/ou for capaz de fazer na Câmara dos Deputados e no Senado, como argumentámos acima. Mas há um campo por explorar no centro e no centro-direita…, que será também um teste à solidez das orientações democráticas das direitas brasileiras. E, naturalmente, a linha de rumo a seguir estará também dependente da forma como o candidato for capaz de gerir o sistema ultra-consensualista brasileiro, com a sua híper-fragmentação partidária e a sua extrema personalização política. A forma como poderá gerir e lidar com esses constrangimentos institucionais, bem como as reformas políticas de que o Brasil precisa, ficarão para um próximo artigo.

 

Publicado originalmente no Jornal de Letras, coluna Heterodoxias Políticas, novembro de 2018.

 

André Freire
andre.freire@meo.pt

Professor Catedrático em Ciência Política. Foi diretor da Licenciatura em Ciência Política do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa (2009-2015). É desde 2015 diretor do Doutoramento em Ciência Política do ISCTE-IUL. Investigador Sénior do CIES-IUL. Autor de numerosas publicações em livros e revistas académicas. Perito e consultor convidado de várias instituições nacionais e internacionais.

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